O boneco de plástico

DO TEXTO: Amigos inseparáveis, o boneco de sorriso fixo acompanhava o garoto na escola, no lanche, no banho. Quem nessa parceria saberia mais um do outro?
Boneco de plástico

Era o boneco quem brincava com o menino. Na ânsia de brincar, era ele a brincadeira



Por: Angelo Asson*

Era uma vez um boneco de plástico, desses articulados que pouco ou quase nada têm de mobilidade, e muito menos de realidade. Nem chegam a dobrar os joelhos. A patela é fixa, os cotovelos são fixos, os olhos são fixos, o sorriso, falso feito agrado de político. Pudera, não passava de uma cópia barata adquirida numa banca de camelô.

Ainda assim, na imaginação daquele menino o boneco tinha sentimentos tão humanos quanto os que lhe faltavam. Ele fazia parte do seu mundo, perambulava pela cidade nas mãos do menino, apreciava as cenas do cotidiano, flertava com as menininhas, que, no fundo, não passavam de miragens de água cristalina que jamais chegariam a matar a sede do menino tímido. Devaneios de criança que sequer conhece o sabor de um beijo, quanto mais o de uma noite a dois em corpos articulados. Incorporado na pele plástica e fria do boneco, o menino libertava sua coragem e os devaneios reprimidos.

O que era o menino em seu corpo quente e flexível perto de um boneco com tamanha autoconfiança? Não passava de um serviçal a serviço de uma marionete. Era o boneco quem brincava com o menino. Na ânsia de brincar, era ele a brincadeira. Mas o que são as brincadeiras senão uma forma de viver a realidade com a qual sonhamos?

Amigos inseparáveis, o boneco de sorriso fixo acompanhava o garoto na escola, no lanche, no banho. Quem nessa parceria saberia mais um do outro? O boneco, discreto, apenas ouvia. Ou se expressava falsamente através das frases sussurradas do menino, feito fantoche de ventríloquo. No fundo, o menino vivia mais na pele do boneco do que na sua própria. A pele falsa sentia mais do que a dele. O sorriso falso era mais sincero do que o dele. Os olhos fixos enxergavam muito mais, e muito mais além. Mesmo com joelhos e cotovelos fixos, ia muito mais longe do que era possível ao garoto, acorrentado pela insegurança.

E assim foi, até que um garoto bruto da escola arrancou uma de suas pernas com sua indelicadeza. Ainda assim, o boneco se deslocava por onde quer que o menino fosse, desprezando a falta, a brutalidade, a invalidez. Preso em si, o menino era a perna que lhe faltava, e o boneco, a liberdade ausente do menino.

Essa cumplicidade prosseguiu por anos, até que um dia, o menino procurou sua metade pela casa toda e não a encontrou.

- Mãe, você viu meu boneco de plástico?
- Qual, aquele que tava faltando uma perna?
- Esse mesmo!
- Ah, eu joguei fora aquela porcaria. Depois a mãe compra outro pra você.

O menino chorou. Chorou como nunca tinha chorado antes, como se lhe houvessem arrancado uma perna. Sem saber, a mãe havia jogado fora não apenas um boneco, mas seu melhor amigo. Ela havia descartado parte do seu filho, uma parte importante da sua vida. Havia jogado seus sonhos no lixo. E mais do que isso. Ela ensinou para o seu filho que as coisas incompletas são descartáveis, inúteis.

     A mãe aleijou seu filho.

O menino — agora adulto — passou a olhar com desdém para os deficientes. Ele aprendeu, quando criança, que as coisas incompletas não têm valor. Não passam de bonecos de plástico que podem ser facilmente substituídos por algo novo e completo, ainda que falsos.

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