Roberto Carlos na Bahia

DO TEXTO:
Paquito De Salvador (BA) Eu vi o Rei e ele estava de branco. Doce e diferente dos especiais mais recentes da TV Globo. Ao vivo é bem melhor. Tudo que ele diz soa bem, justo, simples. Eu vi o Rei, após 45 anos de vida sempre perto de seu som, que me embala desde que nasci em Jequié, no interior da Bahia, e vivia vidrado na Zilomag, a marca da radiola lá de casa. Dela saíam os sons de Roberto Carlos, girando célere, a voz em vinil. Meu primeiro contato voluntário com a música, além das cantigas de roda. Por isso, é estranho que eu não tivesse visto antes um show ao vivo de Roberto. Talvez porque eu pensasse e fingisse, adolescente, que não era romântico. Talvez porque seu som e presença estivessem e estejam sempre comigo, e isso bastava. Talvez porque tenha sido o momento ideal vê-lo agora, rei dos animais. Desde a chegada ao estádio de Pituaçu, em Salvador, quando passamos por um caminho extenso ladeado por vegetação - o que deu um ar de romeiros a nós, súditos - até o final com fogos de artifício, tudo parecia um misto de quermesse do interior - as cadeiras de plástico, modestas e um tanto desconfortáveis - com missa, ritual. Mas um rito não se faz apenas com cenários. Sem o objeto de culto, a mágica não se daria. Há a banda, a RC-9, que o acompanha há anos, e cuja apresentação afetuosa do Rei não aparece nos especiais de fim de ano na TV, uma pena! Há o maestro Eduardo Lages. Há os músicos de orquestra. Há uma latinidad à brasileira. Mas sobretudo a sua presença e o canto, bem cool, aliás, a despeito das canções que versam sobre amores mal sucedidos, é que nos conquistam. Ou me conquistam, pois parecia que ele cantava só pra mim e meu amor. Às vezes, durante a apresentação, eu observava os rostos e via as faces apaziguadas. Parecia um Brasil melhor, mesmo que por apenas duas horas. Como se aquelas pessoas não cometessem infrações de trânsito nem pequenas corrupções ou grandes indelicadezas no dia a dia. Roberto Carlos consegue ir contra a corrente dos nichos culturais, da segmentação de mercado que atinge a todos os artistas, menos ele. No seu show não há tribos, me falou Anna. Sora Maia, minha amiga iconoclasta que o diga, pois ela estava lá, plena de emoções. E o digam os roqueiros novos e velhos, os últimos primeiros ultra muito românticos, as crianças, os coroas, os caretas e os doidões. Do nosso lado, estava uma francesa que não entendia o por quê de tanta devoção. Talvez porque ela não seja brasileira ou da América Hispânica, onde ele também reina. E Roberto é essencialmente brasileiro, o que desafia outro mito, o de que o samba é o gênero brasileiro por excelência. Como, se o nosso cantor mais popular há 50 anos canta o que se chama de música romântica, o que inclui majoritariamente baladas e o iê iê iê dos primeiros tempos? Aliás, em todo o repertório do show, teve lugar pra apenas um samba, aquele da Mulher pequena. Como diria Vinicius, "venho de três raças muito tristes/ e eis porque viver tanto me dói". E, como dizia Raul, outro ídolo popular, eu quero mesmo é cantar iê iê iê, gostar de você, falar de amor, sentir seu calor e a delícia das coisas mais simples e menos intencionais. Cristianismo ingênuo, amores imensos e absolutos, sempre e outra vez. A densidade se fez em Detalhes, quando o rei iniciou a canção apenas com seu violão, nuzinho, sentado na varanda na casa da gente. Engraçado, as duas músicas de maior sucesso de Roberto Carlos são pragas bem rogadas: Quero que vá tudo pro inferno, que ele não mais canta, e Detalhes, cujo verso "Não adianta nem tentar me esquecer" vai sendo reforçado ao longo da canção insistentemente, amainado pela doçura triste da melodia e do canto. Mas só posso terminar com o início, quando ele apareceu e eu o vi, pela primeira vez, talvez como na primeira vez em que o ouvi. Naquele instante, não havia público, orquestra, não havia Brasil, nem samba ou especiais de Natal. Só estávamos eu, Roberto Carlos, minha mãe, que escrevia meu nome com a caligrafia exata nas capas enormes dos vinis, e a Zilomag, meu Rosebud. In Terra Magazine 17-12-2009

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2 Comentários

Comentários

  1. Quando na net visualizava notícias sobre a gravação do Especial 2009, deparei com este artigo sobre o qual deixei o seguinte comentário:

    Dos referidos “roqueiros novos e velhos, os últimos primeiros ultra muito românticos, as crianças, os coroas, os caretas e os doidões”, não sei bem onde me enquadro. Só sei que sou um robertocarleano convicto, um robertodependente, porém, não extremista.

    E sobre o artigo supra, dos muitos que sobre Roberto Carlos li, este é para mim um dos mais bem conseguidos. Por isso não podia deixar de felicitar o respectivo autor, comunicando que com a devida vénia irei publicá-lo no meu blogue “Splish Splash”.

    Abraços robertocarlisticos

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  2. Oi Armindo!

    Que bom, que passeando na Internet, achou esse artigo.
    Muito bonito,e com momentos parecido aos meus e meus filhos.

    Parabéns ao autor e obrigada a você por nos trazer o artigo.
    Também sou robertocarleana convicta, e uma robertodependente, mesmo.

    Beijos,
    Carmen Augusta

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