Angola já não é nossa

DO TEXTO:

Por: Carlos Alberto Alves
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Estive em Angola no período de Março de 1965 a Março de 1967, mas, como já disse (e escrevi), a “minha guerra” foi da escrita, quer nos primeiros seis meses quer nos restantes dezoito em que fui, em Gabinete de Imprensa, um dos colaboradores do então Governador-Geral, Tenente-Coronel Rebocho Vaz que, mais tarde, já aposentado com a patente de Coronel, viria a falecer em Lisboa vítima de doença incurável.


O nosso camarada/amigo, Guerry, nome fictício, nasceu numa das chamadas ilhas pequenas (Açores), mas, devido às débeis condições económicas da família, cresceu a saltitar entre as ilhas de S. Miguel, Terceira e Santa Maria, não necessariamente por esta ordem. Mesmo com muitas dificuldades, os pais conseguiram que tirasse o 5º. Ano do Liceu Nacional de Angra do Heroísmo.

Ainda com 20 anos, Guerry foi chamado para o serviço militar obrigatório, nas Caldas da Rainha, onde tirou a recruta do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), finda a qual seguiu para tirar a especialidade de Comandos.

Pouco tempo depois de terminar o CSM e a referida especialidade, foi mobilizado para Angola como Furriel Miliciano, integrado numa companhia de Lisboa, sendo colocado no Grafanil. Pouco depois, começaram as operações nos matos.



Ao longo destas conversas que mantive com antigos combatentes que encontrei pelo caminho – Lisboa, Estados Unidos, Canadá, e agora um no Brasil - algumas têm sido muito difíceis e mesmo dolorosas para os nossos interlocutores e até para nós que, nem sempre, ou quase nunca, conseguimos abstrair-nos das situações penosas com que nos deparamos – e que tivemos conhecimento “in-loco”, ora através de notícias que chegavam, ora através de contatos pessoais com amigos e colegas que integravam companhias onde estavam açorianos. A presente, não fugiu à regra, foi muito complicada dado o seu estado psicológico. Só depois de longos minutos de conversa, conseguimos colocar as perguntas habituais sobre o que mais o tinha marcado. Guerry ficou algum tempo calado, como que a meditar sobre o passado, passou a mão pelo rosto e respondeu com alguma dificuldade. “Foram tantas situações que nem sei por onde começar, tendo participado em operações, não sei bem a conta, mas cerca de sessenta, em todo o Norte e Leste de Angola,” faz pausa mais uns instantes e recomeça, “… logo na segunda operação sofremos um ataque numa picada e tivemos dois feridos ligeiros. Dias depois, partimos para uma operação destinada a destruir um acampamento, quando já estávamos muito perto fomos atacados e o colega que ia ao meu lado foi atingido com um tiro na cabeça, tendo morte imediata. Fiquei todo coberto de sangue. Quando vi que tinha a cabeça desfeita, corri como um louco, mais alguns colegas, até ao acampamento e destruímos tudo, não restou nada nem ninguém.” Guerry de repente cala-se, as lágrimas correm pelo rosto enrugado e fica em silêncio, durante vários minutos. A muito custo recompõe-se e continua. “Sabes, eu quando vi o meu colega morto, fiquei completamente paranóico, só queria era destruir aqueles filhos da puta e disparei sobre tudo e todos. Só horas depois de regressar ao quartel é que acalmei e comecei a pensar em tudo o que tínhamos feito naquele acampamento. Tive várias noites sem conseguir dormir”. Voltam as lágrimas e fica deprimido. Depois, conta pormenores, mas, devido à sua violência, não descrevemos. Guerry sofreu muitos ataques e caiu em várias emboscadas, mas uma marcou-lhe a vida militar. “Sempre que íamos em missões para o mato, eu não gostava de levar a G3, mas sim, outra metralhadora (MG-42), era mais pesada, mas fazia grande serviço. Um dia, estávamos em pleno combate, eu estava semi-ajoelhado para poder tirar maior rendimento da arma e o Alferes chamou-me besta e para me deitar no chão, eu que já estava com a cabeça quente apontei-lhe a 42 e disse-lhe que se voltasse ao fazer, era um homem morto, ele calou-se. Dias depois de regressarmos ao aquartelamento, fui chamado ao Capitão que me disse que o Alferes tinha participado de mim. Fui para uma companhia de africanos mais uns meses”.

Guerry foi ferido duas vezes, a primeira sem gravidade, só pequenos estilhaços, alguns dos quais ainda hoje “guarda” no corpo, mas da segunda foi mais grave. “Eu já estava na companhia dos meus amigos africanos, grandes Homens e grandes Amigos, íamos acabando de atravessar um riacho, quase seco, quando fomos atacados pelo inimigo, alguns colegas foram atingidos, corri, desesperadamente, a fazer fogo, com a MG-42, para tudo o que se mexia, acompanhado por alguns camaradas, só paramos depois de os aniquilarmos todos. Quando regressamos para junto dos colegas feridos, onde havia dois mortos, é que me disseram que eu tinha a perna direita cheia de sangue e as calças rotas, afinal tinha sido atingido na perna sem dar por isso, não foi muito grave, mas fui evacuado contra a minha vontade e fiquei com alguns danos na articulação dos dedos, porque o tendão foi atingido”. Pela sua ação nesta operação, adicionada a muitas outras e que, por motivo de espaço, não podemos descrever, foi-lhe atribuída a Cruz de Guerra, a qual nunca lhe foi entregue por razões que ele desconhece, mas que também não quer falar mais disso.

A muito custo, fala da despedida dos pais, que não tinham mais filhos. Com as lágrimas nos olhos diz: “Coitados, muito sofreram. Para não os atormentar mais do que já estavam, nunca mandei dizer que tinha sido ferido, só quando regressei é que souberam, mesmo assim minha mãe fartou-se de chorar”. Aqui, descontrola-se e chora, convulsivamente, durante vários minutos.

Depois de regressar, Guerry casou e emigrou para o Brasil, onde vive há mais de trinta anos. Não tem filhos porque, segundo afirma: “Durante anos eu não queria ter filhos com receio que pudessem vir a passar pelo mesmo que eu passei na guerra e depois já não foi possível.”.

Guerry vive, constantemente, atormentado pelo passado, não passa uma noite que não tenha pesadelos com a guerra. “Eu não consigo dissociar-me do meu passado da guerra, este me persegue constantemente, por mais que tente não consigo. Eu vou todos os dias passar a tarde com os amigos para distrair, mas, ao fim da tarde, quando regresso a casa e entro ao meu portão para dentro, abate-se sobre mim uma tristeza e uma angústia enorme.

Quando perguntamos se tinha emigrado igual ou diferente, responde: “Oh meu amigo, depois de tudo o que passei nos matos de Angola, sede, fome, ver morrer camaradas/amigos com 21 anos a meu lado e sem nada poder fazer, matar pessoas a sangue frio e sem dó nem piedade, porque era a Lei da guerra, matar para não morrer, eu nunca mais podia ser o mesmo. Ainda hoje, estou sempre vendo a expressão de medo e de terror, daqueles a quem eu apontava a MG-42, tinham a morte estampada no rosto e no olhar. Coitados, foram vítimas de uma guerra estúpida, como, aliás, são todas as guerras”.

Há mais de trinta anos que terminou a guerra para o País, mas, para os Veteranos da Guerra do Ultramar e para as suas famílias, já o escrevi, mas repito, os malefícios desta guerra perduram e perdurarão até ao fim dos seus dias.

Guerry em termos económicos está bem, mas, em termos psicológicos, vive numa situação angustiante para qualquer ser humano.

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