Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano

Umas férias de mandar peso

Fajã de São João, 11 de Julho
A vitória da selecção obriga-nos a trabalhar as manhãs, a mim e ao R. (a Catarina já estava condenada), mas após o almoço descemos ao calhau, cada um com a sua faca de cozinha, e ponho-nos a apanhar lapas.
Ficamos ali mais de uma hora. A maré vai enchendo, e há vagas que nos rebentam contra o corpo. Impelem-nos em direcção ao basalto e, porém, é como se nos purificassem.
Passamos em casa, a apanhar as mulheres e o Vasquinho para um banho no porto, mas são ainda as lapas que nos atraem. Lá em baixo, esquadrinhamos cada rocha até darmos por composto o nosso saco do Compra Bem.
Comprometo-me a fazer um arroz de lapas para amanhã. Por agora, olho a encosta em frente, os seus verdes infinitos, as faias e os dragoeiros, e torno a ter a certeza: a ilha da redenção é São Jorge.
À noite, voltamos à taberna da Mónica e do David, para um caldo de peixe. As mesas são feitas de paletes, os individuais cosidos à mão. Há velas a arder e, ao fundo, as luzes do Pico e do Faial brilhando.
Fechamos com um pudim de queijo da ilha, os cagarros grasnando por sobre a Fajã. No fim, pagamos uma bagatela. E eu pergunto-me: o que vamos nós fazer para Bali, se o que queremos é descansar?
O que vamos fazer para Fortaleza, ou Punta Cana, ou outro lugar qualquer – fechados em resorts, pagando extras, ensurdecidos pela berraria divertidíssima dos animadores da piscina?
Que desperdício.

Fajã de São João, 12 de Julho
Cozinho o arroz de lapas, com massa de malagueta feita pela D. Rosa e o essencial trazido do quintal do Paulo: alho e cebola, salsa e coentros. Escaldo as lapas, separo as conchas, refogo o arroz e depois cozo tudo junto, rectificando.
Separar as conchas leva-me mais de uma hora, mas toda a gente aprova.
Depois subimos ao planalto, atravessamo-lo de ponta a ponta, através das alamedas de hortênsias, e descemos à Queimada, no sentido daquela prainha paradisíaca de que os Márcios um dia nos mostraram uma foto.
A Isabel vem ter connosco, com a Laura. Há águas-vivas no fundo e uma caravela flutuando junto às rochas. Mas a Laura traz um camaroeiro, eu apanho a caravela e saltamos todos, indiferentes às águas-vivas.
A Laura é a primeira. É linda, activa, com uma presença de espírito e um sotaque de São Jorge deliciosos. Se eu tivesse uma filha, gostava que fosse igual a ela. Creio que inspirei uma personagem nela antes mesmo de a conhecer.
Depois mudamo-nos para a Urzelina, para o Vasquinho brincar na piscina. No cais, enquanto nadamos, há um garajau pescando. Sobrevoa-nos e mergulha a pique – mesmo no meio de nós, descarado.
Percorro a silhueta da Urzelina, a terra do meu avô, e acho que aquele garajau traz mais com ele do que o coração de um pássaro. E, quando enfim regressamos a casa, convido o R. para subirmos à taberna a beber um Constantino.
O meu avô beberia um Constantino?

Fajã de São João, 13 de Julho
O dia está chuvoso, e começamos cedo de mais a sentir a tristeza do fim das férias. À tarde, ao atravessarmos os nevoeiros da Serra do Topo, de regresso da Calheta, é como se algo dentro de nós começasse a amar aqueles nevoeiros.
Ligo ao Henrique, a saber do Melville e da Jasmim. Sinto saudades deles como já sinto saudades daqueles nevoeiros. Mas, entretanto, o Paulo manda chamar para o jantar.
Há lapas na grelha, caldo com peixe frito, cavacos cozidos. Foi apanhá-los o Carvalho, de mergulho, ali mesmo na Fajã de São João.
Bebemos cerveja e rosé e deixamo-nos a conversar, ouvindo a noite. O Vasquinho brinca com a Madalena. Acho que se está a apaixonar pela Madalena. Mas ontem também se estava a apaixonar pela Laura.

Fajã de São João, 14 de Julho
A Isabel ofereceu-se para cuidar do Vasquinho, pelo que descemos os quatro adultos da Serra do Topo à Caldeira de Santo Cristo. Percorremos o vale encantado, os cerrados e as cascatas, e depois a Caldeira abre-se em esplendor.
Nos arrabaldes, pastam quatro vacas.
– Estas quatro vaquinhas, este pasto, e instalávamo-nos já aqui... – brinca a S.
Esquece-se de que nem acolá, no fundo daquele vale precioso, estamos em liberdade: um burocrata faz asneira num banco qualquer, em Lisboa ou na Cochinchina, e aquelas quatro vacas desaparecem do quadro como num desenho animado, “plop”, o pasto verde transformado num baldio cinzento e estéril.

Fajã de São João, 15 de Julho
Atingimos o ponto em que fizemos tudo o que queríamos e não temos pressa para nada. Férias.
Arrastamo-nos todo o dia pela Fajã. Depois descemos ao calhau, eu e o R., e pomo-nos a apanhar lapas outra vez.
Comemo-las cruas, agora, sentados na rocha – lapas cruas e vivas ainda, e nós comendo-as ao crepúsculo como homens das cavernas que houvessem descoberto as emoções.
Estamos em paz.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”



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