Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

Nesta semana do Natal, mais um excelente trabalho do escritor-jornalista Joel Neto, que, assim, regulamente. e dentro da sua forma de estar na escrita, mantém-se fiel aos leitores deste Portal Luso - Brasileiro Splish Splash e páginas aderentes.
Um tema que fala de bola de couro. E recordamos que, nosso tempo de infância, era o que mais pretendíamos do Papai Noel.

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO


Isto é um homem que a gente ouve sentados de cadeira

Terra Chã, 15 de Dezembro
Esta manhã comprei uma bola de couro, para brincar com o Melville, e lembrei-me logo do Tiago de Palmela. Nunca mais o vi. Já tentei procurá-lo na Internet, no Google e até no Facebook, mas é difícil. Não me ocorre quem pudessem ser hoje os nossos amigos em comum. Não me lembro do sobrenome dele ou do que os pais estiveram aqui a fazer. Não me lembro sequer de quanto tempo, exactamente, permaneceu cá. Lembro-me apenas de que lhe devo a minha primeira bola de couro.
Sempre que compro uma bola de couro, penso no Tiago de Palmela. Mesmo quando se trata de uma destas bolas de couro ruim, que compramos para enganar um bebé de colo ou brincar com os cães no quintal. Gostava de poder agradecer-lhe, um dia: teve mais significado para mim, aquela venturosa bola de couro, com os seus pentágonos num ladrilho azul, do que dois terços dos brinquedos da minha infância.
Nós tínhamos dez ou onze anos e já íamos a meio do primeiro período, a caminho do Natal, quando o Tiago chegou. Apresentou-no-lo a Filomena Lage, a professora de Português, uma morena alta por quem estávamos todos secretamente apaixonados. “Este é o Tiago e vem de Palmela”, disse. “A partir de hoje faz parte da nossa turma.” Eu olhei o rapaz gordinho, memorizei aquela palavra, “Palmela”, e achei que podíamos ser amigos.
(Agora lembrei-me também da professora Filomena Lage. Morreu mais jovem do que sou hoje, tornando a demonstrar a injustiça do cosmos. Dizia “primeiro perííodo”, carregando bem no “i”, e ensinou-me muito sobre a língua e o cuidado a ter com ela.)
Emparceirámos durante muito tempo, eu e o Tiago de Palmela. Vogávamos pelo pátio do ciclo preparatório, nem rufias nem amigos das meninas, e quando chegávamos mais cedo ficávamos a conversar. Fui muitas vezes à casa onde vivia, na Rua do Meio de São Pedro, ao fundo da qual ele tinha o quarto mais espectacular que eu já vira. Falava-me do lugar de onde vinha e eu deixava-me ali, a imaginar Palmela, Setúbal, Sesimbra – pensando em montes e vales, em cidades orladas de olivais, sem saber que um dia essa seria a minha geografia também.
Até que, certa tarde – e lembro-me bem destas palavras –, ele me perguntou:
– O que é que queres de presente de anos? Uma bola de couro ou um despertador?
Tinha visto um despertador muito giro – nós ainda não usávamos aqui essa palavra, “giro” –, que se abria assim e apitava assado. Na verdade, era o que queria oferecer-me. Só que isto foi antes de as bolas de couro se chamarem bolas de cabedal. Ninguém do meu círculo tinha uma bola de couro. E, embora eu lhe tivesse dito que o melhor era ser ele a escolher, ou mesmo que não queria nada, foi uma bola de couro que ele me ofereceu.
Entregou-ma na tarde do meu aniversário, no seu quarto de São Pedro, a mãe postada a ver à minha reacção com o ar curioso de quem assiste ao desabrochar da crisálida. Eu meti a bola debaixo do braço e trouxe-a na urbana, bem no meio da camioneta, de pé, enquanto outros rapazes aqui da freguesia me perguntavam se aquilo era mesmo couro e quando iríamos jogar.
Jogámos muito tempo com aquela bola de couro, eu, os meus primos, os meus vizinhos, os Embaixadores do Rei. (E agora lembrei-me dos Embaixadores do Rei. Os Embaixadores do Rei jogaram imenso com aquela bola.) Eu levava-a num saco plástico e ia pontapeando o saco rua fora, a caminho da escola, do ringue de patinagem, do relvão da universidade. Jogámos com aquela bola até ela perder o ladrilho azul. Quando esvaziou, já não era assim tão incomum possuir-se uma bola de couro – alguém foi buscar outra a casa.
O Tiago desapareceu do meu radar não muito depois. Creio que voltou para Palmela, ou então os pais foram colocados noutro lado. Talvez fosse engenheiro, o pai dele  – vinham muitos engenheiros e arquitectos, naqueles anos, por causa da Reconstrução. Ou talvez o Tiago ainda tenha ficado por cá um ano ou dois, noutra turma, e a minha crescente adesão ao grupo dos rufias nos haja tresmalhado um do outro.
Gostava de saber como reencontrá-lo, agora mais ainda do que ontem. Ele ofereceu-me a minha primeira bola de couro, mas isso é o menos. Ele falou-me de Palmela e de outros lugares – lugares do continente –, e eu tinha um desejo enorme de conhecer outros lugares, de torná-los parte de mim, de me tornar parte deles. E, sobretudo, fez-me lembrar agora os Embaixadores do Rei, os engenheiros da Reconstrução e a professora Filomena Lage, à qual nunca cheguei a dizer o quanto devo.
Nesta tarde benigna de Inverno, sobre a relva aquecida pelo sol, pontapeio esta bola de couro para o meu cão e chego a ter pena dele. Uma bola de couro nunca chegará a significar, para um cão, a viagem que pode significar para um homem.


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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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