A MPB na memória

DO TEXTO:
Tarcísio Faustini ao lado de seu filho Vinícius Faustini, jornalista e escritor,
em sessão de autógrafos no âmbito do lançamento do livro "Diário de um salafrário" - Vitória, Outubro/2009




A Gazeta

Tiago Zanoli
tzanoli@redegazeta.com.br



Ao entrar no apartamento onde vivem Tarcísio Faustini e sua família, a primeira coisa que se vê é um painel com fotos de grandes artistas da música brasileira e de nomes expressivos da cultura local. De cara, o anfitrião desafia o visitante a reconhecer as pessoas ali retratadas, entre as quais estão Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Maysa, Afonso Abreu e Luiz Paixão. A três passos, está a sala de estar, decorada para se parecer com um barzinho. No canto, chamam a atenção um violão Ibanez, um gramofone antigo e outro painel, com o poema “Canto Brasileiro”, de Paulo César Pinheiro.

Nesse ambiente charmoso, Faustini, que completa hoje 60 anos, recebeu o Caderno 2 para um bate-papo no qual relembrou momentos marcantes de sua trajetória – mais da metade dela dedicada a pesquisar e divulgar a música brasileira. São 17 anos à frente do programa “Domingo Brasil”, na rádio Universitária FM, mas sua paixão pela música nasceu bem lá atrás, em meados da década de 50.

A memória leva Tarcísio ao distrito de Guaraná, em Aracruz, por volta de 1956, quando a televisão engatinhava no país, e o rádio era o principal veículo de comunicação. “A Rádio Nacional era a Rede Globo da época. O mundo era atualizado via rádio”, conta ele, que se recorda com saudade dos programas de auditório, nos quais cantores e músicos apresentavam-se ao vivo, com arranjos orquestrados.

Vozes
Aos ouvidos de Faustini, as primeiras canções chegaram nas vozes de Marlene, Emilinha Borba, Angela Maria, Ivon Curi e Cauby Peixoto, grandes ídolos daqueles tempos. “Era encantador ouvir isso naquele aparelhinho. Era um evento social, as pessoas se reuniam para ouvir. As amigas da minha mãe iam lá para casa ouvir rádio-novela.”

Ele se mudou para Vitória em 1963 e morou no Centro, onde havia bons cinemas e bares como o Britz – pontos de encontro da juventude. Naquela década, a televisão já ganhava força. Por aqui, a TV Vitória (então vinculada aos Diários Associados de Assis Chateaubriand) veiculava extensa programação musical, na qual se apresentavam artistas locais como Virginia Klinger, Rose Valentim e Antonio João.

“Havia um programa chamado ‘Clube dos Brotos’, comandado por Fernando Beresford, no qual as pessoas se apresentavam fazendo mímicas, dublando canções de sucesso. Havia um sujeito que imitava Ray Charles, usando óculos escuros. Muita gente achava que eram eles mesmos quem cantavam (risos).”

Foi com a era dos festivais, a partir de 1965, que Faustini começou a pesquisar sobre música e a colecionar discos. Até então, ele se recorda, o público só conhecia as canções por meio dos cantores, ninguém pensava nos autores. “Na época, os compositores também começaram a cantar e ficaram mais conhecidos, com uma música mais elaborada, como Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso.”

Ao mesmo tempo, tentou aprender a tocar violão... o que não deu muito certo. “Fui aluno de Maurício de Oliveira, Tião Oliveira e Elias Borges. Gostava tanto de ver Maurício tocar que não aprendi nada (risos). As aulas eram um pretexto para apreciá-lo ao violão.” Apesar de não ter dominado o instrumento, aprendeu, por outro lado, a ouvir música de outra maneira.

De lá para cá, seu repertório começou a crescer, não apenas em quantidade de canções, mas em conhecimento. Ele mergulhou na história da música brasileira e nas histórias por trás das canções. Queria se aprofundar nas questões políticas, nas críticas ao regime militar, entender as metáforas e as mensagens “escondidas” nas letras.

Reuniões
A música era moeda de troca entre os amigos, que promoviam encontros dominicais na casa de Tarcísio, no Parque Moscoso, onde trocavam descobertas e discutiam sobre música. “Eu morava em frente ao Corpo de Bombeiros. Na época da ditadura, muitas pessoas eram levadas para serem interrogadas lá, e a gente ficava ouvindo aquelas músicas chamadas subversivas na maior altura, para desespero da minha mãe (risos).”

Em 1968, Faustini ingressou no curso de Engenharia Civil, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde participou do movimento estudantil. “Todo estudante tinha que participar das passeatas ou era tachado de alienado”, conta ele, que também foi professor de cursinho. “Éramos estudantes e jovens professores. Os alunos tinham quase nossa idade. Formamos ali uma espécie de clube, que reunia todos os que se interessavam por música.”

No início da década de 90, ele foi convidado para comandar o programa “Domingo Brasil”, na Universitária FM, criado pela jornalista Conceição Soares. Amilton Garcia, então diretor da Fundação Ceciliano Abel de Almeida (FCAA) e velho amigo daqueles encontros regados a música, indicou Tarcísio.

O primeiro “Domingo Brasil” foi ao ar em maio de 1993. No início, Tarcísio não era locutor, apenas escrevia os textos e cedia os discos. “Eu sentia que a rádio estava se tornando um grande vitrolão. Não gostava quando tocavam uma música sem dar informações sobre ela. Ocorreu-me, então, a ideia de trabalhar com temas”, diz ele, mostrando o estúdio, em seu apartamento, onde grava o programa.

Garimpo de raridades na web
Nascer há seis décadas permitiu a Faustini viver momentos bastante distintos da história. Ele pôde testemunhar as transformações na música e a evolução dos meios de comunicação. Se, nos anos 50, o rádio era o único veículo que tinha ao alcance, a internet hoje oferece um volume torrencial de informações. “O melhor da web é ter acesso a gravações raras”, diz. Contudo, filho de outra geração, ele não crê que o MP3 possa substituir o disco. “Não gosto de ter músicas misturadas no iPod. É importante ter acesso ao álbum na íntegra, com encarte e ficha técnica.” Para ele, é importante saber a forma como o artista pensou a sequência das músicas e os nomes dos artistas que participaram das gravações. “Se o cara tocou caixa de fósforo em uma única música, o nome dele tem que estar lá. Acho uma falta de respeito com o artista não colocar o nome dele no disco”, completa.

Cinco discos memoráveis
1. “Edu e Bethânia” (1967). “Primeiro disco que comprei, o marco zero do meu acervo. Já conhecia o trabalho de Edu Lobo pela interpretação de Elis Regina para ‘Upa, Neguinho’, e o de Maria Bethânia como substituta de Nara Leão na peça ‘Opinião’, com uma interpretação vigorosa de ‘Carcará’. Esse disco apresentou a sofrida ‘Pra Dizer Adeus’, na qual Torquato Neto antecipava sua despedida intencional da vida, e trouxe uma Bethânia perfeitamente entrosada com os temas regionais de Edu.”

2. “Sidney Miller” (1967). “Outro dos meus primeiros discos, adquirido quando eu tinha uns 17 anos. Os festivais revelaram grandes compositores, e Sidney Miller era um dos melhores, disputando minha preferência com Chico Buarque. Pena que ele encerrou muito cedo sua carreira aqui na Terra, em 1980, mas deixou trabalhos belíssimos, principalmente nesse disco. Foi um dos precursores na citação de cantigas de roda em suas músicas, muitas gravadas por Nara Leão e pelo Quarteto em Cy.”

3. “O Importante É que a Nossa Emoção Sobreviva” (1975). “Gravado ao vivo, reuniu um grande autor de melodias (Eduardo Gudin), um poeta fértil (Paulo César Pinheiro) e uma cantora competente (Márcia), mas era mais que isso, porque representava uma postura de contestação ao regime político vigente e se tornou trilha sonora obrigatória nas rodas de violão politizadas dos anos 70 – como aquelas que aconteciam às sextas no lendário Bar Santos, na Vila Rubim.”

4. “Canções de Chico Buarque na Interpretação de Zé Luiz Mazziotti” (2002). Além do repertório menos óbvio de Chico, esse disco conta com uma das mais belas vozes que já ouvi. Traz pérolas menos conhecidas de Chico, como ‘Mulher, Vou Dizer Quanto Eu Te Amo’, e a participação do autor em ‘Cadê Você’, parceria com João Donato. A cereja do bolo é a versão em francês do próprio Chico para ‘Eu Te Amo’, feita com Tom, que virou ‘Dis-Moi Comment’.”

5. “Bruno Mangueira” (2009). “Esse disco representa tantos músicos capixabas que nos dão orgulho. Acompanho o trabalho do Bruno, guitarrista e violonista de altíssimo nível, desde quando ele fazia mestrado em violão em Campinas e participava vitoriosamente de festivais. Depois de um ótimo disco com seu Trio Azeviche, ele produziu e arranjou um disco belíssimo com suas composições – exceto por ‘Devaneio’, de Cariê Lindenberg, conhecido tema da TV Gazeta que já faz parte da memória afetiva capixaba.”

Gazeta Online

27-07-2010

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Foto publicada pelo Splish Splash

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2 Comentários

Comentários

  1. Olá maninho!

    Que bela reportagem sobre o senhor Tarcisio, pai do nosso amigo Vinicius.

    Bom, parabéns para ele eu já dei...
    Mas renovo aqui minhas felicitações.

    Também vivi no tempo em que o rádio era meu companheiro.Ouvia a Rádio Nacional direto.
    Programa Cesar de Alencar aos domingos, Francisco Alves,Emilinha, Marlene e tantos outros.

    Tivemos, em relação à música no passado, coisas parecidas.
    Sr. Tarcisio se aprofundou nela e merece mais cumprimentos por isso.

    Mas uma coisa me deixou triste: Ele não cita o NMQT, Roberto Carlos...

    Mesmo assim mais uma vez parabéns para ele, para o nosso Vinicius, pelo pai bacana que tem, e a você meu querido mano, por nos trazer essa bela reportagem.

    Beijos,
    Carmen Augusta

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  2. Antonio Baptista Filho4 de julho de 2012 às 21:45

    Zapeando a Internet descobri o Faustini, que acompanho pelo 104,7 FM há tempos. Apelo a ele descobrir algumas músicas cantadas pela Rose Valentim, que é uma total desconhecida pelos pesquisadores da MPB. Aguardo alguma coisa no "Domingo Brasil". Antonio Baptista Filho

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