Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Aperta pra dentro

Lugar dos Dois Caminhos, 25 de Abril
Houve um tempo em que a direita e a esquerda se dividiam entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro e isso tinha algum tipo de significado. Chegava a ser respeitável.
Um tipo de esquerda desdenhava do 25 de Novembro e o desdém dele produzia em nós um choque. Um tipo de direita maldizia o 25 de Abril e a maledicência dele produzia em nós um choque. O choque era o fito último de ambos e tinha um valor instrumental. Punha-nos a pensar.
Uma pessoa equilibrada acabava, evidentemente, por chegar à conclusão equilibrada. O 25 de Abril tinha levado ao 11 de Março, realmente tinha, mas acabara com a ditadura e mantinha-se um milagre. O 25 de Novembro tinha-nos trazido ao capitalismo desenfreado e à corrupção, realmente tinha, mas impedira outra ditadura e estava até mais esquecido do que devia.
No fim, ambas as datas pertenciam à gente de bem.
Nada disso acontece agora. Passados 44 anos sobre a revolução – ou golpe de estado, ou deposição do regime, chamem-lhe o que quiserem –, os portugueses habituaram-se às dicotomias. O manifesto político deixou-se integrar pelo Sporting-Benfica do costume.
Um tipo de esquerda já não desdenha do 25 de Novembro: ignora-o olimpicamente, como se ele não fizesse parte da construção democrática de um país. E um tipo de direita já não maldiz o 25 de Abril porque nem concebe a redenção da data: passa simplesmente à conversa seguinte, que é como se vive qualquer outro dia sem história salvo que não há o que fazer, as televisões estão cheias de celebrações dir-se-ia que litúrgicas e, ainda por cima, as repartições públicas fechadas.
É esse 25 de Abril que, a partir desta janela, nesta freguesia rural desta ilha remota, vejo assinalar hoje – na televisão e na Internet, nos cafés e nas ruas da minha ilha também. Talvez nos tenhamos precipitado até este ponto, nos últimos anos, através da chinfrineira fácil das ditas redes sociais e dos seus sempre pungentes mecanismos de afirmação e pertença. Mas essa, creio, foi apenas a fragilidade imunológica sobre a qual o vírus grassou. A educação deixou de ter resposta para a falta de memória porque o modelo da efeméride está esgotado e ainda ninguém conseguiu encontrar outro.
Daqui até ao regresso às cavernas ainda vai alguma distância, mas vai menos do que já foi. Por mim, nunca cheguei a deitar fora aquela moca de pau de roseira que o meu avô deixou aí no fundo da despensa.

Chaves, 26 de Abril
Passo por Trás-os-Montes para participar num encontro luso-galaico em que já sei que me vão fazer a pergunta: “E você, o que vai fazer no resto da sua vida?” Pode parecer esquisito, mas os festivais literários são assim. E a verdade é que eu gosto da pergunta, porque me permite, desde logo, elogiar a morte.
Elogiar a morte, de facto. Se esta vida não tivesse fim, se não houvesse um fim, nenhum de nós chegaria a levantar-se da cama de manhã. Tudo no mundo em que vivemos se organiza em função da existência da morte. Sem morte não haveria trabalho ou sequer arte. Não haveria urgência nem – muito menos – construção.
Sem fim não haveria até início, bem vistas as coisas. E, se continuasse a haver início, sem haver fim, então a única solução, não podendo nós matarmo-nos uns aos outros, era enchermos o mundo de cárceres onde pudéssemos irmo-nos aprisionando mutuamente, na luta pelos últimos recursos disponíveis, até que, mais cedo ou mais tarde, nada restasse senão um só grande cárcere.
A morte é a própria razão da existência, a verdade é essa. O fim é a própria ordem das coisas. É porque não há tempo para tudo que efectivamente dedicamos tempo a alguma coisa. Por outro lado, não se pode realmente fazer tudo, e o segredo de viver está aí.
Portanto, o que vamos nós fazer no resto da nossa vida? Estabelecer prioridades. Isso e fazer planos até ao último dia. Ande por onde andar, tudo o que procuro é deixar-me numa posição em que possa começar um novo romance na própria semana da minha morte e, ainda assim, na manhã do dia nefasto, tornar a acreditar, por uma última e redentora vez, que esse, sim, será o tal.
Eis tudo quanto aprendi. Não é muito. O que eu espero fazer até ao fim da minha vida é estabelecer prioridades, continuar a fazer planos planos e tratar do meu pomar. Será uma vida boa.

Chaves, 27 de Abril
Esta manhã conheci uma personagem. Tem uns olhos de menino, apesar de à beira dos cinquenta, e a voz serena de quem até perante o desespero pensará duas vezes. A sua profissão é criar quadros de palavras-cruzadas.
Auto-intitula-se cruciverbalista, palavra que eu nunca tinha ouvido, e tem um inimigo sobre todos os outros: o sudoku. Foi o sudoku que começou a afastar as palavras-cruzadas dos jornais e ainda vai ser o sudoku a acabar com elas. O sudoku, o software ou a língua inglesa, com a sua ditadura e as suas uniformizações grosseiras.
Por isso, o meu cruciverbalista decidiu adoptar uma palavra perdida: xurdir (isto é, “fazer pela vida”). Integrou-a no seu discurso. Passeou-a pela rua. Candidatou-a a votações online. Hoje tomávamos juntos o pequeno-almoço e, abrindo o casaco, mostrou-me a sua t-shirt – com a palavra “xurdir” impressa.
Imagino-o personagem de um policial, vestido com a sua t-shirt a dizer “xurdir”. Não o hei-de matar, isso é certo. Só ainda não decidi se não acabarei por fazer dele o assassino.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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