Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO



Ah, pobre de Cristo...


Lugar dos Dois Caminhos, 3 de Março
A noite passada acabei um romance. Não acabei: concluí a primeira versão. Ainda me faltam semanas de revisões. Mas a estrutura, a arquitectura da narrativa, é a minha primeira demanda. É ela que me leva o sangue: a construção gradual das personagens, a rotação dos narradores, o desdobramento dos elementos da intriga, a visitação dos dispositivos de narração. E isso tem pelo menos as paredes de pé.

A noite passada acabei um romance e agora sinto-me invencível. Até segunda-feira, dia em que começarei a dar-me conta das repetições, dos bordões e das incongruências, acharei que poderia subir os Himalaias, namorar com a Kate Winslet, voar sobre os centrais como o Jardel.
É para este momento que vivemos. Às vezes perguntam-me por que gosto tanto de escrever. Suponho que façam as contas ao que ganha um escritor, quociente decepcionante até nos casos mais promissores. Costumo dizer que quando era adolescente me comportava tão mal que quem a mim se referisse só encontrava uma ressalva: “Mas, pronto, escreve bem.” No fundo, era isto ou uma vida no crime.
Mas não é de escrever que gosto, como aliás já disseram tantos. Escrever é horrível, um suplício tenebroso, no caso de um romance como até de uma crónica como esta. Escrever trata de superarmos os nossos limites, e os nossos limites são sempre menos excitantes do que gostaríamos. E, contudo, há esta sensação, momentânea e avassaladora, de se ter ido até ao fim.
Conheço poucas realizações parecidas com esta de ter levado um romance até ao fim. Aquilo que nos alimenta é ter escrito, não escrever.
Nos últimos três anos, visitei seis países. Enviei a mim próprio mais de quatro mil e-mails. Escrutinei três prateleiras de bibliografia. Afixei pelas paredes centenas de papéis. Fotografei lugares, documentos e até pessoas em quem julguei poder inspirar personagens. Importunei dezenas de amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos em busca de pistas, esclarecimentos, opiniões, favores – tudo por causa do romance.
E não foi o pior. Tive acessos de fúria. Distraí-me a meio de conversas com todo o tipo de gente que merecia uma conversa a sério. Guiei em excesso de velocidade, e muitas vezes levava os Metallica ligados no máximo, And the road becomes my bride, And the road becomes my bride, I have stripped of all but pride. Só não fiz qualquer check-up médico, como me comprometera, porque podia receber uma sentença de morte e isso tolher-me-ia na hora de acabar o romance.
Estive sempre disposto a morrer. Só nunca estive disposto a não acabar o romance.
Entretanto, metade da ilha zangou-se comigo e três quartos dos amigos de Lisboa também. Quando estou em Lisboa não apareço, e se apareço só falo do romance. Quanto estou na ilha não vou aos bailinhos, nem às exposições, nem às touradas, nem ao Bodo, nem às verbenas, nem ao Dia de Amigos, nem aos casamentos, nem aos aniversários. E, se vou, fico para ali a fumar, sem saber o que dizer, porque só me ocorre falar do romance e já ninguém tem paciência para esse estupor desse romance que nunca mais sai, e oxalá ao menos seja alguma coisa de jeito, e de qualquer maneira a seguir vais dizer que estás a escrever outro romance e ninguém pode contar contigo na mesma, não é?
É. Na verdade, é. A cada romance que escrevo preciso de mais silêncio, a cada ano que passa preciso de mais reclusão. Ao longo deste livro, habituei-me a ter o telemóvel sem som, depois no Não Incomodar, depois desligado. Deixei de visitar os meus pais em dias de semana. Reduzi o Facebook a links destas crónicas e fotografias do meu pomar, o meu último entretém para lá do body attack e do step, feitos como se tivesse 20 anos ou, mais provavelmente, houvesse enlouquecido.
Há uns tempos, pus-me a fazer planos para montar um barracão ao fundo do quintal, um desses barracões de madeira a que os ingleses chamam shed, e onde não quero sequer electricidade. Nos últimos meses, enfiei papéis de jornal no sino do portão e, quando verifiquei que os carteiros – os meus amigos carteiros, o Emanuel e os outros, a quem devo tanto – continuavam a ter de fintar o problema, mandei construir uma caixa de correio gigante, com uma porta gigante também, para levar encomendas e tudo.
Mesmo assim, tive de inventar compromissos para não ter de estar em lugares, viagens para não ter de receber pessoas, doenças para nem sequer me tentarem recrutar. Tornei-me egoísta e mentiroso, mais ainda do que me tornara no romance anterior. E provavelmente vou ter de me tornar mais egoísta e mais mentiroso no próximo, caso contrário não haverá próximo, e eu com o sentimento de culpa ainda vivo, sem próximo romance é que não.
Mas, pronto, a noite passada acabei um romance e agora sinto-me capaz até de confessar tudo. Fazia anos hoje – faço anos hoje – e queria oferecer-me essa concretização. Fazia 44 anos – faço 44 anos –, os mesmos com que morreu o meu tio Daniel, e precisava de acreditar que não morreria sem deixar pronta a melhor coisa que alguma vez fiz na vida.
Deixei-a ontem à noite. De facto, não sei se está boa ou má, se está apenas gira ou nem sequer isso. Há pouco pus-me a pensar nela e ainda me pareceu a melhor que fiz. Felizmente, na segunda-feira vou voltar achar que sou estúpido e inábil e mesquinho e inútil, pelo que estará tudo bem na mesma. É sempre daí que vem o romance seguinte.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

POSTS RELACIONADOS:
Enviar um comentário

Comentários