Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

Amizade é uma velha máxima do cancioneiro português. Joel Neto, felizmente, mantém esse espírito. O "estrelato" da literatura não lhe subiu à cabeça, ao invés de outros que bem conheço. É por isso que, ´durante os últimos cinco lustros, passa o Ano Novo com os amigos de faculdade. Um tal património, de todo relevante, que ele conserva.

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO


Aquilo é mulher que gosta muito do seu frango

Domingo, 1 de Janeiro
Este ano passámos a noite de Ano Novo com os amigos de faculdade. Que digo eu? Fora o tempo em que as geografias nos impuseram fronteiras – quando a Yara e o Julien viveram em Madrid ou em Paris, por exemplo –, há quase vinte e cinco anos que passo a noite de Ano Novo com os amigos de faculdade. E, agora que olho para trás e verifico que levamos tanto tempo nisto, pergunto-me quantos patrimónios evidentemente mais relevantes um homem pode conservar.
Os colegas chamavam-nos Turma do Balão Mágico, invejosos, e éramos mais do que hoje. Entretanto, casámo-nos uns com os outros, divorciámo-nos uns dos outros, segregámo-nos uns quantos, afastámo-nos outros tantos. Cometemos erros, todos. Mas, apesar dos que se foram tresmalhando e juntando, vivemos juntos as mais marcantes dores e as mais exultantes celebrações.
Morreram pais e estivemos juntos. Nasceram filhos e estivemos juntos. Tornámo-nos padrinhos, compadres. Houve problemas conjugais e desempregos, triunfos e conformações, solidões impostas pelo trabalho e silêncios pela necessidade.
Continuámos cá.
E ainda cá estamos, bastantes. Nem sempre todos juntos, mas sempre pelo menos alguns juntos. Reunimo-nos na casa de uns nas Amoreiras, perfeita para ver o fogo-de-artifício, como na casa de outros na Estefânia, o lugar mais aconchegado de todos, ou nas minhas casas do Seixal, do Bairro Alto ou da Terra Chã, com tão pouco em comum a não ser serem minhas. Juntamo-nos na noite de Ano Novo e logo planeamos o momento em que nos juntaremos outra vez. E mesmo os que aparecem apenas ocasionalmente sentem que continuamos a formar um corpo, uma unidade – divisível mas única.
Podíamos ser os amigos de Alex, se não existisse entre nós uma intimidade verdadeira. Podíamos estar a viver o primeiro ano do resto das nossas vidas, se não fôssemos já tão crescidos que em breve poderemos dizer isso: somos amigos há vinte e cinco anos, e somo-lo porque nos escolhemos. A minha história também é a daquelas pessoas. A história delas também é a nossa – minha e da Catarina, uma das últimas a chegar (como o Jorge) e, apesar disso, parte de nós como se desde o princípio.
Temos sorte.
Fazem-me falta na ilha, os meus amigos de Lisboa – apesar de todos os restantes. Mas, por outro lado, não me fazem mais falta do que quando vivíamos na mesma cidade e passávamos semanas sem nos vermos. Talvez até nos vejamos mais (ou melhor) hoje. E é ao pensar nisso que eu percebo que a dicotomia geográfica a que eu e a Catarina nos propusemos há quatro anos e meio já nem chega a ser uma dicotomia. Estamos agora tão em casa passeando pelo Chiado durante duas semanas, de sapatilhas Merrell nos pés, como durante três meses de botas-de-cano, atravessando as Veredas com os nossos cães.
Há dias, no jantar de Natal da família da Catarina, falávamos da nossa obsessão pela rádio e de, ao mudar para a ilha, termos comprado um aparelho para ouvir as estações do continente, por insuficiência das locais (é impossível ouvir jazz o dia inteiro, por exemplo). “São boas, mas não o que precisamos diariamente”, justifiquei. “Porquê? Até deve ser giro...”, contrapôs um tio. Disse-o por simpatia, mas errou o alvo. Passado todo este tempo, não nos move muito mais curiosidade antropológica do que aquela que tínhamos em Lisboa e o nosso impulso etnográfico está, em boa parte, satisfeito. Já não é “giro” viver na ilha. Já não é exótico. Este é o lugar de onde somos. Também é. Vivemo-lo tanto quanto possível como locais, tal como, tanto quanto alguma vez se pode sê-lo seja onde for, vivemos como locais Lisboa.
Usufruímos do melhor de dois mundos, para usar uma frase batida.
Anteontem tive um compromisso na Expo e quase chegava atrasado, porque perdi a saída da Paiva Couceiro para a Mouzinho de Albuquerque. Na quarta-feira levei o meu afilhado Louis ao cinema e andámos horas em cumplicidades, risotas e pipocas. Em nenhum dos casos me senti forasteiro, como em nenhum caso me sinto forasteiro na ilha e no campo. Sou eu, somos nós – somos assim e já não precisamos de títulos: nem rurais nem urbanos, nem rurais da cidade nem urbanos do campo (nem os seus contrários).
Escasseiam nostalgias dessa natureza, agora. Lisboa é a cidade à volta da Terra Chã. Mudou o mundo e mudámos nós.
Este ano, como sempre, passámos a noite de Ano Novo com alguns dos meus amigos de faculdade. Dos nossos amigos. A Pipa trouxe o alguidar da Salgueirinha e eu cozinhei uma alcatra. Na quarta, quando fui levar o Louis a casa, os irmãos mais velhos dele, já adolescentes, justificaram-se por não celebrarem connosco. “Vejam se fazem alguma coisa gira”, suspirou o Pierre, numa condescendência doce, desconfiado de que às duas estaríamos a dormitar pelos sofás. Disse-lhe que íamos ter um DJ a partir da uma. A verdade é que comemos a alcatra, devorámos os bolos da Kayser, tirámos uma selfie com cartolas e, vistos os fogos, dormitámos pelos sofás.
Foi tão bom como sempre. E eu sei que ainda falta muito para chegar a última vez de outro de nós. Mas, mesmo então, continuarão os restantes.



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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

                                                           

Milton Nascimento - Coração de estudante

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