A fúria do poeta

DO TEXTO:
Arte: Lucas Araújo

Carlos Araújo 

A poesia de Gullar fala de um ser em luta constante consigo mesmo e com o mundo que o cerca. A tensão do corpo é inevitável, a ansiedade começa a fazer parte de tudo e o problema é que não se sabe que rumo tomar 

Como numa licença poética, Ferreira Gullar morreu há duas semanas num período em que as atenções dos brasileiros estavam concentradas na tragédia do time da Chapecoense e na tensão política em Brasília. Nesse clima, sua morte, embora registrada nos noticiários, teve repercussão apenas formal, discreta, levando-se em conta que ele era o maior poeta brasileiro em atividade nesta segunda década do século 21. A morte de Gullar, pode-se dizer, também foi um capricho e um drible da poesia nos fãs de seus versos ousados, furiosos, claros e diretos como socos no estômago. 

O poeta maranhense, que morava no Rio, deixa como legado uma obra que insere o seu nome na categoria de outros grandes nomes da poesia como João Cabral, Bandeira, Drummond. Como esses três, Gullar também foi ignorado pelo Nobel. Não importa. Quem criou o Poema sujo, A luta corporal e Dentro da noite veloz não precisa do Nobel para se eternizar como poeta de uma geração de artistas que contribuiu para interpretar o Brasil com palavras e versos duros como a pedra lascada. Sua genialidade usou e abusou de metáforas e ritmos dignos de uma ópera popular, de descrições de imagens e invenções de mundos que desnudam as feridas abertas das dores e misérias de um povo marcado pela desesperança. 

Antes de beber na fonte mergulhando nos poemas de Gullar, ele é a própria poesia. Sua figura magra e de cabelos escorridos, rugas esculpidas pelo tempo e olhar indescritível, era a expressão da linguagem poética. Quem o conheceu pessoalmente diz que, contrariando a aparência ranzinza, era um cara simpático, bem humorado, mas irredutível nas suas convicções. Ganhou destaque, nos últimos anos, por suas críticas à era Lula em crônicas publicadas na Folha de S. Paulo. Foram estranhas as suas divergências com o poeta Augusto de Campos, com quem travou intermináveis "duelos" por escrito, num embate semelhante a outros afastamentos entre intelectuais, como na rivalidade entre Sartre e Camus. 

Impossível ser indiferente a Gullar, um poeta que usa o Poema sujo para escrever coisas assim: "turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro". Ou trajetórias como essa de A luta corporal: "Caminhos não há / mas os pés na grama / os inventarão". Ou a tentativa de decifrar a realidade em Dentro da noite veloz: "Há muitas famílias sem rumo esta tarde / nos subúrbios de ferro e gás / onde brinca irremida a infância da classe operária." 

A poesia de Gullar fala de um ser em luta constante consigo mesmo e com o mundo que o cerca. A tensão do corpo é inevitável, a ansiedade começa a fazer parte de tudo e o problema é que não se sabe que rumo tomar. E, curioso, essa fragmentação frenética é a essência da poesia, que não existe para apontar rumos nem muito menos para salvar alguém. 

Começa pelo fato de que Gullar tem dificuldade de decifrar a poesia e por isso ele escreve, num fluxo, como se estivesse em busca de resposta para inquietações que são dele, mas que também pertencem a nós. Talvez por essa razão é que a voz poética dos seus versos se identifica de tal forma com os nossos medos que faz parecer que é também a nossa voz. 

Gullar é o inventor de uma poesia cruel, que mais faz sofrer do que levar à redenção. A luta corporal é um exemplo. Certa vez, ele descreveu: "Escrevi A luta corporal por causa das contradições em que me envolvi. Escrevo pelo prazer e pela necessidade de responder a indagações que a vida me coloca, e não para entrar na história da literatura." Ao contrário de outros poetas, não teve o pudor de ser engajado. Sentia a realidade como carne e polpa de miséria humana e os seus versos traduzem esse sentimento em Poema sujo. 

No momento em que nasceu A luta corporal, Gullar estava em Brasília exercendo um cargo público. Fora nomeado presidente da Fundação Cultural de Brasília. Assistiu à renúncia de Jânio Quadros. E continuou: "Depois veio o governo do Jango e eu voltei para o Rio e comecei a entrar num outro Brasil, no Brasil real, que não era o Brasil da vanguarda, de A luta corporal, mas da reforma agrária, da fome." 

Também considerava que a poesia se manifesta em várias coisas e lugares: na beleza da mulher, no canto do passarinho, no sorriso da criança. Rubem Braga, o maior cronista brasileiro, assinaria embaixo. Numa entrevista recente, Gullar suspeitou que a tecnologia dominante pode resultar numa poesia que ainda está em gestação. 

Personalidade de boa conversa, inventava citações que viravam anedotas. Atribuem-lhe o fato de numa divergência com a mulher, ter dado razão a ela mesmo com a convicção de que estava certo no seu entendimento sobre um assunto em discussão. Perguntaram por que ele não insistiu na sua tese, defendendo-a até o fim, e ele respondeu: "Eu não quero ter razão, eu quero é ser feliz." 

Fosse o Brasil um país desenvolvido, um poeta dessa dimensão teria recebido mais atenção, na vida e na morte. Ao desaparecer, com a idade de 86 anos, Gullar deixou a lição de que a morte também pode ser encarada como insondável e devastadora licença poética. 


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