DO TEXTO:
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política
João Pereira
Coutinho
O
acordo ortográfico é conhecido em Portugal como o aborto ortográfico. Difícil
discordar dos meus compatriotas. Basta olhar em volta. Imprensa. Televisões.
Documentos oficiais. Correspondência privada.
Antes
do acordo, havia um razoável consenso sobre a forma de escrever português.
Depois do acordo, surgiram três "escolas" de pensamento.
Existem
aqueles que respeitam o novo acordo. Existem aqueles que não respeitam o novo
acordo e permanecem fiéis à antiga ortografia.
E
depois existem aqueles que estão de acordo com o acordo e em desacordo com o
acordo, escrevendo a mesma palavra de duas formas distintas, consoante o estado
de espírito --e às vezes na mesma página.
Disse
três "escolas"? Peço desculpa. Pensando melhor, existem quatro. Nos últimos
tempos, tenho notado que também existem portugueses que escrevem de acordo com
um acordo imaginário, que obviamente só existe na cabeça deles.
Felizmente,
não estou sozinho nestas observações: Pedro Correia acaba de publicar em
Portugal "Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico"
(Guerra & Paz, 159 págs). Atenção, editores brasileiros: o livro é
imperdível.
E
é imperdível porque Pedro Correia narra, com estilo intocável e humor que baste,
como foi possível parir semelhante aberração.
Sem
surpresas, a aberração surgiu na cabeça de duas dezenas de iluminados que, em
1990, se reuniram na Academia de Ciências de Lisboa para "determinar" (atenção
ao autoritarismo do verbo) como os 250 milhões de falantes da língua deveriam
escrever. Qual foi a necessidade teórica ou prática do conluio?
Mistério.
Em todos os países de língua portuguesa, com a exceção do Brasil, respeitava-se
o acordo de 1945. E nem mesmo as diferenças na ortografia brasileira incomodavam
os portugueses (ou vice-versa).
Nunca
ninguém deixou de ler Saramago no Brasil por causa do "desacordo" ortográfico.
Nunca ninguém deixou de ler Nelson Rodrigues em Portugal pelo mesmo motivo.
Acontece
que as cabeças autoritárias sempre desprezaram a riqueza da diversidade. Em
1986, no Rio de Janeiro, conta Pedro Correia que já tinha havido uma tentativa
ainda mais lunática para "unificar" a língua, ou seja, para unificar 99,5% das
palavras (juro). Como?
Por
uma transcrição fonética radical que gerou termos como "panelenico" (para
"pan-helênico") ou "bemumurado" (para "bem-humorado"). Será preciso
comentar?
O
novo acordo é menos radical desde logo porque admite "facultatividades" que
respeitem a "pronúncia culta" de cada país. Deixemos de lado a questão de saber
se a escrita pode ser mera transcrição fonética (não pode) ou se a etimologia
deve ser ignorada nas "simplificações" acordistas (não deve).
Uma
deficiente interpretação do que significam essas "facultatividades", conta o
autor, levou o governo português, no seu Orçamento do Estado para 2012 (o
documento central da política lusa), a escrever a mesma palavra de formas
diferentes: "ópticas" e "óticas"; "efectiva" e "efetiva"; "protecção" e
"proteção"; e etc. etc.
Mas
mais hilariantes são os casos em que a aproximação portuguesa ao Brasil gerou
palavras que nem no Brasil se usam. No novo acordo, "recepção" perdeu o "p"; no
Brasil, o "p" continua. O mesmo para "acepção", "perspectiva" e por aí fora.
Perante
este aborto ortográfico, que fazer?
Curiosamente,
Angola e o Brasil já fizeram muito: a primeira, recusando-se a ratificá-lo; o
segundo, adiando a sua aplicação.
Só
os portugueses continuam a marrar contra a parede "" e, pior, a marrar contra
uma ilegalidade: o tratado original do Acordo Ortográfico de 1990 garantia que o
mesmo só entraria em vigor quando todos os intervenientes o ratificassem na sua
ordem jurídica. Essa intenção foi reafirmada em protocolo modificativo de
1998.
Mas
eis que, em 2004, há um segundo protocolo modificativo segundo o qual bastaria a
ratificação de três países para que o acordo entrasse em vigor.
Não
é preciso ser um gênio da jurisprudência para detectar aqui um abuso grosseiro:
como permitir que o segundo protocolo tenha força de lei se ele nem sequer foi
ratificado por todos os países?
O
resultado é o caos. Como escreve Pedro Correia, um caos "tecnicamente
insustentável, juridicamente inválido, politicamente inepto e materialmente
impraticável".
Para
usar uma palavra bem portuguesa, "touché"!
http://www1.folha.uol.com.br
04/06/2013
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Comentários
Concordo a cem por cento com o Senhor Doutor Coutinho. Isto é um "aborto ortográfico". O pior de tudo é que estou a ser obrigada a utilizá-lo tanto nas minhas aulas de Português Língua Estrangeira aqui na Bélgica (os livros de PLE da Editora Lidel já trazem as mudanças introduzidas por esta "aberração que chamam de "acordo" (aborto) e também como tradutora ajuramentada, os clientes ´só querem as traduções conforme ao tal "acordo" (abortto) ortográfico.
ResponderEliminarNa minha correspondência privada, não tenha a intenção de adoptá-lo.
Sou brasileira, bisneta de portugueses pelo lado paterno, mas acho este "acordo" (aborto) um absurdo.
Quando tenho de traduzir documentos oficiais para os países que não o ratificaram (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor Leste) não o adopto. É a maior confusão.
Nas aulas de Português Língua Estrangeira, tenho alunos que aprendem o Português porque são descendentes de angolanos, outros de portugueses, outros aprendem a língua porque têm família ou amigos no Brasil. Numa só sala de aula tenho de explicar aos alunos as diversas maneiras de escrever uma só palavra, segundo o tal "acordo" (aborto), ou seja, por exemplo, a palavra "recepção", em Portugal (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), segundo o tal "acordo" (aborto)passou a escrever-se "receção" porque não se pronuncia a letra "P", no Brasil", pronuncia-se o "P", continua então a escrever "recepção", mas em Angola, Moçambique e nos outros países que não ratificaram o acordo, escreve-se "recepção" como no Brasil, mas o "P" não é pronunciado como em Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
A minha vida profissional tem sido uma loucura depois que este "acordo" (aborto) entrou em vigor.
Sem contar que o que faz a riqueza da nossa querida língua portuguesa, na minha modesta opinião, são justamente estas diferenças idiomáticas que os interesses económicos do Brasil e de Portugal estão a tentar destruí-las com a desculpa de que é com o objectivo de o Português ser adoptado como uma das línguas da ONU. O inglês americano e britânico apresentam imensas diferenças e nem por isto os países anglófonos tiveram de assinar um tipo de documento como este.
Aqui vai o meu protesto.
Ocenilda Santana de Sousa, Verviers - Bélgica
Obrigada Ocenilda pelo comentário e pelo apoio que nos dá.
ResponderEliminarImagino seu sufoco para ensinar português com esse acordo ou aborto, ortográfico.Eu que pouco escrevo apanho... Eu já escrevo assim; Acôrdo e Abôrto....Ah! Sinto falta do trema....Pode?
Beijos,
Carmen Augusta
Amiga Carmen, desculpe a minha ausência, estou muito ocupada com o final do ano letivo aqui na Europa nas escolas onde trabalho e também com as traduções e só hoje tive um tempinho (entre uma revisão e outra de um texto traduzido) de vir aqui e ler a sua mensagem. Pois é, amiga, a minha vida tem sido um verdadeiro sufoco mesmo. Tenho de estar sempre atenta quando dou as aulas ou quando faço as traduções para não usar o acordo quando traduzo ou dou aulas de Português para alunos que vão morar em Angola ou Moçambique, sem contar nas diferenças que ainda permaneceram e vão continuar permanecendo entre o Português europeu e o do Brasil, apesar dos economistas de ambos os países garantirem que o tal acordo (aborto) aboliu as as diferenças. Pode uma coisa dessas?
ResponderEliminarBeijos.
Ocenilda