Entre monstros reais, Fernão encalha num inferno verde onde até os bichos parecem ter alma de pirata
"Preferia os homens às feras, até ver que às vezes as feras têm mais palavra." — Fernão Mendes Pinto (Não disse, mas podia ter dito)
NOTAS DE BORDO Local: Baía de Bengala Evento-chave: Encalhe, ataque de piratas, captura e fuga Ano estimado: c. 1541 Ação: Batalha no pântano e sobrevivência entre bichos Estado: Sobreviveu por um fio, com mais cicatrizes que certezas.
"Homens e bestas confundem-se quando a sobrevivência é a única lei." Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
A embarcação de Fernão, desgastada por meses de viagem e cheia de mantimentos preciosos, foi arrastada por correntes traiçoeiras até um banco de areia invisível, no coração da Baía de Bengala. Não havia aviso. Não houve salvação. O casco quebrou-se com um gemido que parecia de animal ferido.
Mal tiveram tempo de se reorganizar, e já surgiam canoas de piratas vindas da selva aquática — homens nus da cintura para cima, com lanças toscas e sorrisos apodrecidos. Eram selvagens de riso fácil e sangue quente, e saltaram para o navio como se tivessem cheiro de ouro no nariz.
A bordo, tudo virou confusão. Fernão tentou defender-se com um remo, mas logo foi derrubado por um golpe de pau. Quando acordou, estava amarrado, mordido por insetos e com os pulsos em carne viva. Os piratas revistavam cada saco, cada baú, enquanto, à volta, ratos e macacos disputavam restos de comida. Era um circo de miséria e violência, onde bicho e homem se misturavam até já não ser possível distinguir o pior dos dois.
Durante o cativeiro, Fernão aprendeu a calar até os pensamentos. Cada gesto podia ser interpretado como desafio. Cada olhar, como afronta. Os piratas não tinham leis — apenas impulsos. E entre eles, os animais pareciam cúmplices: macacos que roubavam comida, ratos que mordiam os pés dos prisioneiros, aves que gritavam como se zombassem da dor humana.
A noite era pior. O calor não deixava dormir, os mosquitos atacavam em nuvens, e os gritos dos companheiros feridos ecoavam como lamentos de um purgatório tropical. Fernão, febril e faminto, começou a delirar — viu santos entre as árvores, ouviu vozes da infância, e por um instante acreditou que estava morto.
Mas não estava. Três dias durou o cativeiro. Um dos seus companheiros foi morto por desobediência. Outro, por tédio dos carcereiros. Fernão fingiu humildade, rezou sem voz e esperou a oportunidade. Ela veio numa madrugada nublada, quando um dos guardas se embriagou com aguardente saqueada. Com um pedaço de madeira afiado, cortou as cordas, rastejou pela lama e lançou-se ao mato — sozinho, ferido e fedorento como bicho. E cada passo na lama foi uma oração sem palavras. Sobreviveu comendo folhas e rezando baixinho. Quando finalmente alcançou um pequeno povoado amigo, não chorou. Apenas caiu. Como quem regressa ao mundo sem saber se ainda pertence a ele.
"Na Baía de Bengala," escreveria mais tarde, "aprendi que o inferno não tem chamas — tem bichos, homens, e silêncio."
DIÁRIO DE FERNÃO Excerto imaginário inspirado na Peregrinação
Um homem encalhado não é peixe nem barco.
Naquela baía, os mosquitos faziam mais barulho que as armas.
Vi ratos a devorar mantimentos e homens a devorar esperança.
Um pirata bateu-me com um osso. Não sei se era dele ou de outro.
E foi ali, atolado e picado, que percebi que o fundo do mundo não tem mapa.
Tem cheiro. E dentes.
NOTA DE BORDO FINAL
Este é o sexto relato da viagem de Fernão — Embarcação encalhada, ataque de piratas, 3 dias em cativeiro, fuga e sobrevivência em pântanos infestados.
Segue-se o episódio 7: Na corte do Japão: espanto e reverência — onde Fernão descobre um mundo totalmente novo, belo e temível.
NOTA FINAL DO ESCRIBA
Gostou da Viagem?
Deixe o seu comentário, partilhe este episódio e convide outros navegadores curiosos a embarcarem nesta aventura.
Entre monstros reais, Fernão encalha num inferno verde onde até os bichos parecem ter alma de pirata
— Fernão Mendes Pinto (Não disse, mas podia ter dito)
NOTAS DE BORDO
Local: Baía de Bengala
Evento-chave: Encalhe, ataque de piratas, captura e fuga
Ano estimado: c. 1541
Ação: Batalha no pântano e sobrevivência entre bichos
Estado: Sobreviveu por um fio, com mais cicatrizes que certezas.
Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
Mal tiveram tempo de se reorganizar, e já surgiam canoas de piratas vindas da selva aquática — homens nus da cintura para cima, com lanças toscas e sorrisos apodrecidos. Eram selvagens de riso fácil e sangue quente, e saltaram para o navio como se tivessem cheiro de ouro no nariz.
A bordo, tudo virou confusão. Fernão tentou defender-se com um remo, mas logo foi derrubado por um golpe de pau. Quando acordou, estava amarrado, mordido por insetos e com os pulsos em carne viva. Os piratas revistavam cada saco, cada baú, enquanto, à volta, ratos e macacos disputavam restos de comida. Era um circo de miséria e violência, onde bicho e homem se misturavam até já não ser possível distinguir o pior dos dois.
Durante o cativeiro, Fernão aprendeu a calar até os pensamentos. Cada gesto podia ser interpretado como desafio. Cada olhar, como afronta. Os piratas não tinham leis — apenas impulsos. E entre eles, os animais pareciam cúmplices: macacos que roubavam comida, ratos que mordiam os pés dos prisioneiros, aves que gritavam como se zombassem da dor humana.
A noite era pior. O calor não deixava dormir, os mosquitos atacavam em nuvens, e os gritos dos companheiros feridos ecoavam como lamentos de um purgatório tropical. Fernão, febril e faminto, começou a delirar — viu santos entre as árvores, ouviu vozes da infância, e por um instante acreditou que estava morto.
Mas não estava. Três dias durou o cativeiro. Um dos seus companheiros foi morto por desobediência. Outro, por tédio dos carcereiros. Fernão fingiu humildade, rezou sem voz e esperou a oportunidade. Ela veio numa madrugada nublada, quando um dos guardas se embriagou com aguardente saqueada. Com um pedaço de madeira afiado, cortou as cordas, rastejou pela lama e lançou-se ao mato — sozinho, ferido e fedorento como bicho. E cada passo na lama foi uma oração sem palavras. Sobreviveu comendo folhas e rezando baixinho. Quando finalmente alcançou um pequeno povoado amigo, não chorou. Apenas caiu. Como quem regressa ao mundo sem saber se ainda pertence a ele.
"Na Baía de Bengala," escreveria mais tarde, "aprendi que o inferno não tem chamas — tem bichos, homens, e silêncio."
DIÁRIO DE FERNÃO
Excerto imaginário inspirado na Peregrinação
Um homem encalhado não é peixe nem barco.
Naquela baía, os mosquitos faziam mais barulho que as armas.
Vi ratos a devorar mantimentos e homens a devorar esperança.
Um pirata bateu-me com um osso. Não sei se era dele ou de outro.
E foi ali, atolado e picado, que percebi que o fundo do mundo não tem mapa.
Tem cheiro. E dentes.
NOTA DE BORDO FINAL
Este é o sexto relato da viagem de Fernão — Embarcação encalhada, ataque de piratas, 3 dias em cativeiro, fuga e sobrevivência em pântanos infestados.
Segue-se o episódio 7: Na corte do Japão: espanto e reverência — onde Fernão descobre um mundo totalmente novo, belo e temível.
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EPISÓDIOS PUBLICADOS
0 – As Viagens de Fernão: o mundo visto por um português
2 – Fernão é vendido: a primeira vez como escravo
A SEGUIR
7 – Na corte do Japão: espanto e reverência
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