Vera Mantero no CCB: corpo, pensamento e liberdade em cena

Vera Mantero regressa ao CCB com Poesia e Selvajaria, Um Estar Aqui Cheio e o workshop O Corpo Pensante, celebrando o corpo como espaço de pensamento
Vera Mantero no CCB com Poesia e Selvajaria, Um Estar Aqui Cheio e workshop O Corpo Pensante

Três momentos fundamentais revisitam a obra de Vera Mantero no CCB em 2026


Vera Mantero regressa ao CCB para lembrar que a arte também é um estado de escuta radical

Em 2026, o Centro Cultural de Belém recebe um ciclo singular dedicado a Vera Mantero, uma das figuras centrais da dança contemporânea portuguesa. Entre janeiro e fevereiro, o CCB torna-se lugar de reencontro com duas obras marcantes do seu percurso e de aprofundamento prático através de um workshop que cruza corpo, pensamento e criação. Não é um revival nostálgico, é um regresso com memória ativa e perguntas ainda em aberto.

Poesia e Selvajaria, estreada em 1998 no âmbito do Festival Mergulho no Futuro, volta ao Pequeno Auditório do CCB (8 e 9 de janeiro), precisamente ao palco onde tudo começou. A peça parte do espanto perante a condição humana, esse território onde o sublime convive sem pedir licença ao brutal. Em cena, um corpo despido de códigos conhecidos procura formas mais livres de existir, mover-se e comunicar. Vera Mantero propõe uma “selvajaria positiva”, feita de escuta instintiva, ingenuidade primordial e abertura ao desconhecido. A proximidade com o público não é decorativa: é uma convocatória direta à experiência, quase física, dessa liberdade em construção. Parte do elenco original regressa, acompanhado por novos criadores, num gesto que liga passado e presente sem os confundir.

Entre os dois espetáculos, o workshop O Corpo Pensante aprofunda os princípios que atravessam a obra da coreógrafa. Durante quatro dias (3 a 6 de fevereiro), estudantes, profissionais e participantes com experiência em dança ou teatro são convidados a trabalhar a partir da relaxação, da voz, da escrita, da respiração e da associação livre. O objetivo não é ensinar receitas, mas criar condições para que movimentos, ações e desejos de composição emergem do que cada corpo já contém. Estados de consciência, atenção ao interior e ao exterior, exploração do espaço, de objetos e materiais fazem parte de um processo onde a ironia e as “mãos vazias” ajudam a ir mais longe. É exigente, sim. Mas ninguém prometeu atalhos quando se fala de pensamento encarnado.

A 26 de fevereiro, o Grande Auditório acolhe Um Estar Aqui Cheio, peça criada em 2001 e apresentada apenas em três salas. Vinte e cinco anos depois da estreia, chega finalmente a Lisboa, com o elenco original, num acontecimento que tem tanto de artístico como de histórico. A obra nasceu de uma residência em Brest, reunindo artistas de diferentes áreas para pensar em conjunto — algo que Vera Mantero assume como uma das suas práticas favoritas. Durante um mês, coreógrafos, performers, um músico, um escritor-performer e artistas visuais interrogaram questões essenciais: o que gera energia, o que nos põe em movimento, como atravessar uma vida que aproveita toda a sua potência.

O resultado é um espetáculo híbrido, mutante, que pode ser concerto, conferência, coreografia ou instalação, sucessiva ou simultaneamente. O público não é mero observador; é convidado a habitar esses outros lugares da existência, menos funcionais, menos lineares, mas absolutamente necessários. São linguagens que escapam às palavras do dia a dia, mas que vivem no corpo, na perceção e na experiência partilhada. Afinar-se a elas é, talvez, um exercício urgente.

Este ciclo no CCB não oferece respostas fáceis nem conforto imediato. Oferece tempo, presença e uma oportunidade rara de escutar o que o corpo ainda tem para dizer. E isso, convenhamos, já é muito.

Nota do Editor – Portal Splish Splash
Revisitar Vera Mantero é lembrar que a criação artística não envelhece quando continua a fazer perguntas incómodas. E estas continuam bem vivas. 
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