"Dos fracos não reza a História", diz o velho provérbio português
Talvez por isso tantos nomes tenham ficado pelo caminho — não por falta de feitos, mas por falta de quem os escrevesse
"O Império começou muitas vezes onde a esperança terminava." Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
Havia homens que não regressavam porque nunca foram feitos para voltar. Degredados, condenados, doentes, inúteis à continuação da viagem — eram eles os escolhidos para descer primeiro à praia, avançar sozinhos, testar a terra, medir o perigo com o próprio corpo. Se morressem, nada se perdia. Se sobrevivessem, melhor ainda: ficavam.
Ficavam na terra, esquecidos, sem regresso, sem nome, a servir de presença portuguesa involuntária. Eram o primeiro posto avançado de um país que não os queria e de um mundo que não os esperava.
Esses homens tornavam-se habitantes por abandono. Não traziam bandeiras nem ordens, apenas o peso da sobrevivência. Aprendiam a língua local para pedir água, depois comida, depois abrigo. Trocaram o nome por um som aproximado, a fé pela adaptação, a esperança pelo hábito. Muitos nunca mais viram um europeu. Outros viam navios ao longe, como miragens cruéis — promessas de resgate que passavam sem os reconhecer.
A cada vela que surgia no horizonte, a esperança subia. A cada vela que passava, o passado afundava mais um pouco.
Com o tempo, deixaram de ser "o homem deixado" para se tornarem "aquele que sempre esteve ali". Alguns casaram. Outros tiveram filhos nos quais corria um sangue lusitano que se diluía, mas não desaparecia. A sua presença infiltrava-se na paisagem humana: um apelido deformado, um costume estranho, um gesto herdado sem memória da origem.
Quando morriam, não havia notícia, nem registo, nem lamento oficial. Ficava apenas a memória local de um estrangeiro antigo, meio esquecido, meio integrado — um nome deturpado numa canção, um olho claro numa criança de várias gerações à frente, um santo de devoção pessoal que não figurava nos calendários.
A História celebrou capitães e naufrágios, rotas e conquistas. Mas raramente olhou para estes homens imóveis, presos ao lugar onde foram largados como carga inútil. E, no entanto, em muitos pontos do mundo, a presença portuguesa começou assim: não com glória, mas com abandono.
É aqui que o provérbio ganha um sabor amargo — ou talvez apenas realista.
Se dos fracos não reza a História, então estes homens foram os seus santos apócrifos.
Não deixaram monumentos, mas deixaram raízes. Não deixaram relatos, mas deixaram descendência. Não deixaram feitos, mas deixaram marcas.
E é possível que, no silêncio desses homens esquecidos, resida a história mais verdadeira do que fomos.
Nota do Editor – Portal Splish Splash Este texto integra uma reflexão sobre as figuras esquecidas das viagens portuguesas, dando voz aos que ficaram fora dos livros, mas dentro da História. A seguir: O língua que sabia demais.
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"Dos fracos não reza a História", diz o velho provérbio português
Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
Ficavam na terra, esquecidos, sem regresso, sem nome, a servir de presença portuguesa involuntária. Eram o primeiro posto avançado de um país que não os queria e de um mundo que não os esperava.
Esses homens tornavam-se habitantes por abandono. Não traziam bandeiras nem ordens, apenas o peso da sobrevivência. Aprendiam a língua local para pedir água, depois comida, depois abrigo. Trocaram o nome por um som aproximado, a fé pela adaptação, a esperança pelo hábito. Muitos nunca mais viram um europeu. Outros viam navios ao longe, como miragens cruéis — promessas de resgate que passavam sem os reconhecer.
A cada vela que surgia no horizonte, a esperança subia. A cada vela que passava, o passado afundava mais um pouco.
Com o tempo, deixaram de ser "o homem deixado" para se tornarem "aquele que sempre esteve ali". Alguns casaram. Outros tiveram filhos nos quais corria um sangue lusitano que se diluía, mas não desaparecia. A sua presença infiltrava-se na paisagem humana: um apelido deformado, um costume estranho, um gesto herdado sem memória da origem.
Quando morriam, não havia notícia, nem registo, nem lamento oficial. Ficava apenas a memória local de um estrangeiro antigo, meio esquecido, meio integrado — um nome deturpado numa canção, um olho claro numa criança de várias gerações à frente, um santo de devoção pessoal que não figurava nos calendários.
A História celebrou capitães e naufrágios, rotas e conquistas. Mas raramente olhou para estes homens imóveis, presos ao lugar onde foram largados como carga inútil. E, no entanto, em muitos pontos do mundo, a presença portuguesa começou assim: não com glória, mas com abandono.
É aqui que o provérbio ganha um sabor amargo — ou talvez apenas realista.
Se dos fracos não reza a História, então estes homens foram os seus santos apócrifos.
Não deixaram monumentos, mas deixaram raízes. Não deixaram relatos, mas deixaram descendência. Não deixaram feitos, mas deixaram marcas.
E é possível que, no silêncio desses homens esquecidos, resida a história mais verdadeira do que fomos.
Nota do Editor – Portal Splish Splash
Este texto integra uma reflexão sobre as figuras esquecidas das viagens portuguesas, dando voz aos que ficaram fora dos livros, mas dentro da História. A seguir: O língua que sabia demais.
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Escriba das coisas da vida e da alma. Admin., Editor e Redator do luso-brasileiro Portal Splish Splash. Máxima favorita: "Andamos sempre a aprender e morremos sem saber". VER PERFIL
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