A Vaidade Digital: Todos Criadores, Poucos Conteúdos

Reflexão crítica sobre o uso banal do título "criador de conteúdos digitais" e o impacto do modo profissional do Facebook.
Ilustração digital com múltiplos portáteis sobre um fundo tecnológico, todos ligados a redes sociais, com o símbolo do Facebook e a frase "A Vaidade Digital – Todos Criadores, Poucos Conteúdos", acompanhada de um ícone de "não gosto" ao centro.

O rótulo de "criador de conteúdos" banalizado pelo modo profissional do Facebook


"Quando o título vale mais do que a obra, o palco vira farsa."
Vímara Porto

Por: Armindo Guimarães
 
 
Há algum tempo que venho notando um aumento constante no número de "Criadores de Conteúdos Digitais" no Facebook.

O que me chamou a atenção foi que alguns dos meus amigos — aposentados ou com profissões que nada têm a ver com o universo digital — passaram, do nada, a exibir o título de "Criador de Conteúdos Digitais".

Mas o mais surpreendente nem foi a mudança de título. Foi o descompasso entre o rótulo e o conteúdo: páginas repletas de imagens desfocadas, convívios, espetáculos, letras de músicas, anedotas, fotomontagens… Enfim, nada que indicasse qualquer especialização, técnica ou domínio das artes digitais.

Afinal, o que é um criador de conteúdos digitais?

Pesquisei e encontrei a seguinte definição:

Um criador de conteúdos digitais é alguém que produz e partilha conteúdos online com o objetivo de informar, entreter ou educar um público específico. Esses conteúdos podem ter diversos formatos: vídeos, artigos, podcasts, imagens, etc. O criador procura envolver o seu público, construir uma comunidade e, muitas vezes, rentabilizar o seu trabalho.

Ou seja, trata-se de um profissional — ou entusiasta dedicado — que domina ferramentas digitais e adapta conteúdos para públicos específicos, em áreas como videojogos, viagens, moda, tecnologia, saúde, entre outras.

Exemplos típicos de criadores de conteúdos:
  
  • Youtubers: Vídeos sobre videojogos, tutoriais, vlogs.
  • Bloggers: Artigos de opinião ou informação sobre temas variados.
  • Podcasters: Programas de áudio com foco em educação ou entretenimento.
  • Influencers em redes sociais: Publicam conteúdos visuais e textuais com apelo específico.

Como tudo acontece

O próprio Facebook contribuiu para esta inflacção de "criadores". A funcionalidade "Modo Profissional" permite que qualquer utilizador transforme o seu perfil pessoal num perfil de criador — bastando ativar a opção. Não é exigida experiência, nem critério, nem qualidade.

O impacto disso?

  • Diluição do significado: Quando todos são "criadores", o termo perde valor. O trabalho sério e profissional acaba nivelado com simples partilhas amadoras.
  • Confusão para o público: O utilizador comum deixa de distinguir quem é criador real e quem apenas testou uma funcionalidade.
  • Desvalorização do esforço: Como noutras áreas criativas, acesso à ferramenta não significa competência.

E mais: a epidemia do título já não está confinada ao Facebook.

Tenho notado com frequência que, em reality shows televisivos, aparece cada vez mais participantes com a profissão de "Criador de Conteúdos Digitais". A sensação é que o termo virou uma almofada social, uma espécie de "preenche-vazio profissional" para quem não tem ocupação concreta — mas quer parecer alinhado com os tempos modernos.

Por outro lado…

É verdade que o modo profissional pode servir de impulso a quem, por exemplo, está desempregado e procura reinventar-se. Nesses casos, o rótulo até pode ser motor de mudança real. Mas esses casos são exceções — e não justificam o alastrar de um fenómeno que esvazia o próprio conceito de "criador".

Criar conteúdo é hoje mais acessível, mas transformar isso numa carreira séria exige muito mais: estratégia, conhecimento técnico, consistência, domínio de ferramentas e uma verdadeira ligação ao público.

No fundo, muitos estão apenas a usar o crachá "criador" porque:

  • Soa mais "importante" nas redes sociais;
  • Esperam ganhar dinheiro com isso (spoiler: não é assim tão fácil);
  • Querem sentir-se parte de um grupo — mesmo que sem prática real.

Há algo de revelador nesta "epidemia digital": uma fome social por validação, onde o rótulo fala mais alto que o conteúdo. No fim, talvez o único conteúdo que muitos estejam de facto a criar… seja a ilusão de que estão a criar algo.

De "Amigos" a "Seguidores" — outra nuance digital

Quando alguém ativa o modo profissional, o Facebook converte automaticamente os amigos em seguidores. E fá-lo sem pedir consentimento direto. Ou seja: pessoas que nunca clicaram em "Seguir" passam a figurar como tal.

Esta prática levanta questões éticas sérias, especialmente no que toca à liberdade de quem pretende usar a plataforma de forma pessoal e discreta.

O Facebook não estará a empurrar todos para um palco que nem todos querem — ou devem — pisar?
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