
DO TEXTO:
Ao chegarmos a Chavães, senti-me um estranho numa terra estranha. O casarão impunha-se pela sua imensidão e, nas traseiras, um recinto de terra batida
Recordações de um tempo que deixou marca
Por: Armindo Guimarães
Hoje, levado por um impulso de saudade, dei por mim a pesquisar na Internet sobre a Casa de Chavães, em Baião, mais precisamente na Rua Dra. Emília Silva, freguesia de S. João de Ovil. O motivo desta pesquisa, que revelarei mais adiante, levou-me a descobrir que esta casa senhorial foi erguida no século XIX pelo General Francisco Lobo de Ávila, uma figura de relevo na Revolução Liberal de 1820.
Em 1947, um dos descendentes do General Ávila vendeu a propriedade à Câmara Municipal de Baião.
Entre os anos de 1976 e 1984, a Casa de Chavães funcionou como sede da Escola Preparatória de Baião e a partir de 1978, durante os meses de verão, acolhia também investigadores e colaboradores do Campo Arqueológico da Serra da Aboboreira.
Entre março de 2011 e março de 2013 a Casa de Chavães foi a sede temporária do Agrupamento de Escolas do Vale de Ovil, devido a obras de recuperação da escola secundaria. Foram instalados contentores nas imediações da casa principal, onde decorreram as aulas.
Após um período de indefinição sobre a sua propriedade e serventia, acabou por ser decidido pela Autarquia local transformar este espaço na Casa da Juventude e Desporto de Baião, mediante obras de restauro e adaptação, mantendo-se sempre a traça original, tendo sido adaptada para alojamento e prática desportiva de adultos e jovens, onde atualmente funciona a Casa da Juventude e Desporto de Baião. É composta por um polidesportivo exterior e balneários de apoio. Dispõe ainda de uma parede de escalada, mini-golfe e circuito de manutenção física. Possui, também, alguns espaços interiores disponíveis na casa principal, como o salão, a sala de convívio, a sala de reuniões e o Núcleo Etnográfico do Museu Municipal que se encontra na antiga adega. No que foi a eira, existe agora um bar de apoio.
Deixei para o fim o motivo que me levou a proceder a tal pesquisa.
É que, para além das atividades referidas, entre os anos 50 e 60, a Casa de Chavães também foi local de colónias de férias de muitas crianças e jovens quando esteve temporariamente na propriedade do albergue distrital e, por essa altura, a Junta de Freguesia de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, onde eu morava, organizava, por intermédio do Governo Civil do Porto, as chamadas Colónias de Férias para crianças mais necessitadas.
Recordo que a minha primeira colónia de férias, foi mista, e, pelo facto de ter sido a primeira, teve para mim um impacto psicológico significativo.
Foi no final dos anos 50, princípios dos anos 60, que pela primeira vez deixei a minha família e a minha cidade, o Porto.
Lembro-me bem do dia. As camionetas estacionavam na Rua Augusto Rosa, e, ao subir para uma delas, senti um aperto no peito, rumo ao desconhecido. A guia deu-nos as boas-vindas e avisou que, junto ao condutor, havia um balde para os enjoos. A viagem começou e, entre cânticos animados, o nervosismo foi-se dissipando:
"Senhor chauffeur, por favor, carregue mais no acelerador!"
"E vinte e sete, e vinte e sete, e vinte e sete, bibó chauffeur da camionete!"
Ao chegarmos a Chavães, senti-me um estranho numa terra estranha. O casarão impunha-se pela sua imensidão e, nas traseiras, um recinto de terra batida com dois baloiços, um balancé e um escorrega de madeira captavam o olhar das crianças.
Os domingos tinham um ritual especial. Seguíamos a pé até à missa, alinhados como um grupo de colégio, impecavelmente vestidos com os uniformes fornecidos pela organização: calções, camisas e sapatos novos. No resto da semana, a indumentária era bem diferente: um simples macacão-calção, sem colarinho, e de tecido fino, de pequeno xadrez azul e branco para os meninos e rosa e branco para as meninas.
O dormitório era enorme, um salão vasto repleto de camas estrategicamente distribuídas.
Foram as minhas primeiras colónias de férias em Chavães, num grupo de crianças de ambos os sexos. Pelo facto de ter sido a primeira, teve para mim um significativo impacto psicológico, de que dei conta num conto a que dei o título "Um cheirinho a brilhantina", que arrecadou o 2.º lugar em prosa no I Concurso Internacional de Prosa - Prémio 'Machado de Assis 2011', organizado pela Confraria Cultural Brasil-Portugal.
Penso que as minhas férias em Chavães, repetiram-se por mais 2 ou 3 anos e num deles, creio que o último, no qual também esteve presente o meu amigo To Zé que morava na mesma rua, ficamos num grupo constituído apenas por rapazes, por certo devido à idade.
As colónias de férias, proporcionavam a criação de novas amizades, da mesma cidade, porém de locais diferentes e como tal, dificilmente se tornariam a ver após terminarem as férias, mas naquela altura compensavam grandemente a falta daquelas que deixamos para trás em suspenso apenas a 80 km de casa, mas que para nós, tão longe que era, representava o fim do mundo.
Mas o escorrega, que antes era usado por meninas e meninos de 6 anos, era agora usado apenas por rapazes de 10 anos e escondia uma armadilha: entre as traves separadas por pequenas frinchas, alguns malandros colocavam pequenos paus que, não raras vezes, rasgavam o macacão-calção, e não só, dos mais incautos.
As colónias também eram tempo de futebol. As equipas não tinham nome, mas sim figuras emblemáticas: de um lado, o Xavier, do Barredo, cantor que reunia admiradores; do outro, Piconero, da Ribeira, cuja estatura impunha respeito. Os gritos de "Piconero!" ou "Xavier!" ecoavam durante os jogos, e a rivalidade entre ambos era equilibrada, embora mantivessem uma amizade curiosa.
Uma coisa que eu observava e que sempre me intrigava era o facto de a admiração da malta da colónia entre um e outro ser era ela por ela, ou seja, 50% para cada lado. Intrigava-me, também, o facto de os dois sempre se darem como amigos, apesar das grandes rivalidades.
Escusado será dizer que eu apoiava a equipa do Xavier, pois gostava de o ouvir cantar "O meu nome é Romão, eu nasci para cantar.." ou "A mancha negra, corre no meu peito…", além de que o achava mais calmo do que o Piconero que não fazia o meu feitio, mantendo até com ele uma certa distância.
Houve um episódio que nunca esqueci. Todas as noites, deixávamos a roupa dobrada ao lado da cama. Certa manhã, ao pegar no meu macacão de xadrez azul e branco que fazia por manter sempre impecavelmente limpo, reparei que havia sido trocado por outro, maior e gasto. Indignado, fui socorrido pela cuidadora, que me deu um substituto, embora visivelmente usado. Entretanto, quem também se apercebeu da situação foi o Piconero que saiu da cama dele e veio ter comigo, confortando-me. Disse-me que não me preocupasse, pois amanhã eu iria ter um macacão novo. É claro que não liguei nada para o que ele disse, dirigindo-me para o balneário e depois para a cantina para tomar o pequeno-almoço.
No dia seguinte, de manhã, o inesperado aconteceu! Acordei, pego no macacão para o vestir e fico pasmado. O macacão era novo e caía-me como uma luva. Por certo foi a cuidadora que, vendo a minha cara de desagrado pelo macacão que me tinha dado no dia anterior, achou melhor substituí-lo por um novo. Maravilha!
E quando eu ia ao encontro da cuidadora para lhe agradecer, eis que me aparece pela frente o Piconero, perguntando-me se eu já estava satisfeito, tendo eu perguntado, satisfeito de quê?, ao que ele retorquiu: estou a falar sobre o macacão, carago! Deu-me um trabalho do carago a consegui-lo e tu continuas para aí armado em palerma?
Eu não sei como foi que ele conseguiu o macacão novo. Só sei que se estava com cara de palerma, então, após ouvir as palavras do Picoconero, nem sei com que cara fiquei. Depois, como se não bastasse, diz-me ele: se souberes quem foi o gajo que te roubou o macacão, diz-me e se alguém se meter contigo, avisa-me. Recordo como se fosse hoje que a minha boca não se abriu.
Aquele rapaz, com quem mantinha uma certa distância, tinha-se preocupado comigo sem que eu o esperasse.
Afinal, o Piconero não era o que eu pensava. Por trás daquela altura, daquele físico e daquela rudeza, havia nele uma certa sensibilidade que só se espelhava em momentos cruciais. No próximo encontro de futebol, é certo e sabido que iria torcer pelo grande Piconero.
As colónias de Chavães marcaram a minha infância. Proporcionavam amizades efémeras, mas intensas, compensando a saudade da família. Embora estivéssemos apenas a 80 quilómetros de casa, para nós, parecia o fim do mundo. Mas era um mundo onde crescíamos, aprendíamos e colecionávamos histórias que, tantos anos depois, continuam a ecoar com a mesma intensidade.
Qualquer dia, ainda volto a Chavães de propósito, só para ver se a memória não me atraiçoa e se ainda reconheço o lugar.
Bibliografia:
Câmara Municipal de Baião
Casa de Chavães
Rota do Romântico
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Comentários
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Que linda recordação menino Armindo!
ResponderEliminarSão fatos marcantes que ficam gravados em nossa memória.
Descreves tão bem os fatos, que me senti como se lá estivesse fazendo parte da Colônia de Férias.
Parabéns!
Beijinhos
Obrigado, menina Albinha. Beijinho.
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