Especial 'Cova Medida' traz raio-x inédito da violência no campo e revela a impunidade diante dos 31 sem-terra, indígenas e ambientalistas mortos no primeiro ano do governo Bolsonaro. Confira o perfil das vítimas, a motivação dos crimes e o drama dos familiares em luto
Por: Daniel Camargos*
Especial multimídia 'Cova Medida' | 28/01/21
As 31 vítimas da violência no campo no Brasil no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro têm nome, sobrenome e um histórico de defesa pela terra. O que elas não têm é justiça. Passado mais de um ano, ninguém foi condenado e apenas um crime foi considerado encerrado: o de um indígena no Amapá que, segundo o Ministério Público Federal, morreu afogado – versão que a família contesta, já que foram encontradas lesões no corpo da vítima.
Outras 19 investigações (61%) não foram concluídas, mesmo depois de um ano, e um dos casos está com o Ministério Público. Dez deles (32%) tiveram a fase de inquérito policial encerrada, mas aguardam julgamento, sendo que seis tratam do mesmo episódio, a Chacina de Baião, no Pará. Em apenas sete dos assassinatos, houve prisão preventiva de suspeitos, em sua maioria fazendeiros e seguranças de fazendeiros, mas em quatro dos casos, eles foram soltos.
Os dados fazem parte de levantamento feito pela Repórter Brasil, com base em relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e reunidos no especial multimídia Cova Medida, que faz um raio-x inédito da violência – e da impunidade – no campo.
“A impunidade é um arranjo estrutural no qual as vítimas da violência mantêm sua condição histórica de invisibilidade, mesmo quando eliminadas”, analisa Paulo César Moreira, coordenador da CPT, organização que elabora há mais de três décadas um relatório anual sobre os conflitos no campo.
A invisibilidade à qual Moreira se refere tem relação com o perfil das vítimas. Os executados em 2019 eram majoritariamente homens (93%), moradores de estados da Amazônia Legal (87%), ligados a movimentos sem-terra (35%) ou indígenas que morreram na defesa do território (25%). Trabalhadores pobres, que muitas vezes já viviam sob ameaça e que sonhavam com um pedaço de terra para sobreviver – um direito garantido na Constituição. Entre os executados, há ainda um servidor da Funai.
O Cova Medida também mostra que a maioria dos casos envolve disputa por terra (39%) ou defesa de territórios indígenas (29%), mas há episódios motivados por questões trabalhistas e até um crime de ódio, como o atropelamento de um idoso durante uma manifestação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Valinhos (SP).
A brutalidade de alguns assassinatos evidencia o ódio e o preconceito contra os povos do campo. Além do militante do MST atropelado, a ambientalista Rosane Silveira, de Nova Viçosa (BA), foi encontrada com os pés e mãos amarrados, sinais de estrangulamento, além de ter sido esfaqueada e ter levado um tiro na cabeça.
Entre os suspeitos ou investigados pela polícia e os acusados pelo Ministério Público, há fazendeiros, seguranças privados contratados por proprietários rurais, caçadores, além de madeireiros e grileiros. Mas há casos em que os investigadores não têm pistas, e situações de precariedade das polícias, como um assassinato no Sul do Amazonas que não teve nem Boletim de Ocorrência e outro, no Mato Grosso, onde a delegacia responsável sequer tinha delegado.
‘Vai ficar por isso mesmo? Eu fiquei com meus filhos, numa luta’, lamenta Elizangela Raimunda da Silva Santos, viúva de Aluciano.
O tempo previsto no Código de Processo Penal para um inquérito policial é de 30 dias – prazo raramente cumprido no caso de homicídios, sejam eles rurais ou urbanos. “Pesquisas sobre homicídio no Brasil e no mundo mostram que, quando os casos são esclarecidos, isso ocorre, em sua maioria, dentro de um ano. Com o passar dos meses, as chances [de resolução] caem porque o tempo apaga os vestígios, diminui a pressão nas autoridades e as testemunhas vão esquecendo detalhes”, afirma o advogado e gerente do Instituto Sou da Paz , Bruno Langeani. Ou seja, os 61% dos casos que estão neste momento na polícia podem nunca chegar ao Judiciário. E, se chegarem à Justiça, podem levar mais de dez anos para serem julgados.
Por entre a falta de estrutura das instituições policiais e a morosidade do Judiciário, a impunidade se repete tanto em crimes recentes quanto nos mais antigos: dos 1.496 casos de violência no campo ocorridos entre 1985 e 2018, apenas 120, ou 8%, foram julgados, segundo levantamento da CPT. A Repórter Brasil também investigou cinco assassinatos ocorridos há mais de uma década para entender se o fator tempo colabora com a justiça: em só um deles houve julgamento, condenação e prisão do responsável.
Além de silenciar vidas e lutas, a violência também prejudica as investigações. “Por ter muitas mortes, há uma dificuldade de conseguir testemunhas. As pessoas não querem se comprometer e isso acaba complicando a investigação”, afirma a promotora agrária de Altamira, no Pará, Nayara Santos Negrão. O promotor agrário de Pernambuco, Edson Guerra, concorda, acrescentando que alguns crimes não deixam rastros: “Ninguém quis falar por medo. Foi uma coisa planejada, bem arquitetada, porque não tinha prova nenhuma”, afirmou Guerra à Repórter Brasil sobre uma das vítimas retratadas no Cova Medida.
Já os delegados, muitas vezes, usam o argumento do sigilo ou dão respostas vagas para não explicar a letargia da investigação. “Há diligências em andamento, que ajudarão a concluir a investigação”, disse um deles, ouvido no Cova Medida. “A investigação segue em curso”, afirmou outro.
Enquanto a justiça não vem, familiares dos mortos encaram o luto às vezes sob ameaças, às vezes enfrentando dificuldades financeiras. “É uma vida angustiante, a gente não tem paz dentro dessa situação. É uma injustiça terrível. Vai ficar por isso mesmo? Eu fiquei com meus filhos, numa luta”, afirma Elizangela Raimunda da Silva Santos, viúva de Aluciano (assassinado no interior do Pernambuco), que hoje conta com ajuda da Igreja para alimentar seus três filhos pequenos.
‘Licença para matar’
“O que faz que essas pessoas pratiquem crimes é a quase certeza da impunidade”, analisa a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que nasceu em um seringal no Acre e conhece de perto a violência no campo, tendo perdido seu companheiro de militância sindical, Chico Mendes, assassinado em 1988 . Mas não só. Para a fundadora do partido Rede, o discurso e algumas medidas adotadas por Jair Bolsonaro, como a redução da fiscalização ambiental, agravam a violência.RAIO-X DA VIOLÊNCIA E DA IMPUNIDADE NO CAMPO STATUS DAS INVESTIGAÇÕES (todos os 31 casos):
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