“É em terra que devemos mudar os maus hábitos”

DO TEXTO:
Nysse Arruda esteve na Madeira em contactos com as 
entidades náuticas e outras instituições
Fotos Rui Silva/Aspress

Nysse Arruda é especialista nos desportos de mar. A jornalista lembra luta na qual a vela é sector pioneiro

Francisco José Cardoso / Madeira

Nysse Arruda, nascida em São Paulo, Brasil, é jornalista especializada em competições à vela de alto mar. Uma paixão desde a primeira hora pelo meio náutico, expressa nas várias colaborações e textos publicados ao longo de anos. Já publicou vários livros (não necessariamente só sobre o mar), o último das quais intitulado ‘Volvo Ocean Race - a regata à volta do mundo’. Em 2016 recebeu o Prémio Femina, pela divulgação da cultura de matriz portuguesa no estrangeiro e na Lusofonia. É criadora e autora do “primeiro e mais completo website sobre desporto à vela nacional e internacional” em língua portuguesa. Saiba mais em www.nyssearrudasailing.com.

Denota ter uma grande paixão pelo mar. Isto porque não é fácil encontrar jornalistas especializados nessa área, muito menos apenas no que toca aos desportos de vela. O que a levou a se especializar na náutica de vela? É verdade que o número de jornalistas especializados em náutica em todo o mundo é muito reduzido. A maioria são velejadores, os fotógrafos inclusive, por isso a ligação muito forte ao mar. No meu caso, a minha ligação com o mar, a vela e a alta competição começou logo após terminar a Faculdade de Jornalismo no Brasil. É curioso porque, na verdade, eu quis ir ver o local onde Pedro Álvares Cabral chegou nas caravelas, quando descobriu o Brasil, em Porto Seguro no sul da Bahia. Nesse local, acabei por entrar num barco para fazer um passeio. Foi praticamente uma descoberta. A ideia em si é interessante, porque o barco é um meio de transporte, também se tira prazer e ainda entrar em competição. Despertei para uma multiplicidade de temas relacionados com o barco, com a vela, o acto de velejar. O interesse cresceu e, porque a temática dos oceanos é muito vasta, indo desde as ciências até à meteorologia, a natureza em si, o ambiente, tem história, tem cultura, tem gastronomia, tem poesia, literatura, música, sem esquecer a tecnologia.

E porquê especificamente o jornalismo da vela a de alta competição? No jornalismo de vela oceânica, ao longo destes anos pude acompanhar o desenvolvimento tecnológico e isso tem muito por contar. Na minha primeira regata de volta ao Mundo, inclusive fiz um livro editado no Brasil, não havia internet, não havia satélite. Hoje, temos um outro nível de navegação oceânica com um aparato tecnológico incrível, mesmo fabulosa, que ajuda tanto navegadores como a própria segurança de todos a bordo. Depois, o tipo de material das embarcações, hoje em fibra de carbono, antes era alumínio, fibra de vidro que, olhando para trás vemos como era básico, simples na altura. E este salto qualitativo aconteceu nos últimos 15 anos, em termos de design, materiais e métodos de construção, inclusive como referi, em termos tecnológicos. Hoje recebe-se as imagens vídeo, fotografia, mensagens de bordo, praticamente em tempo real. Consegue-se comunicar com as tripulações no meio dos mares austrais, algo inimaginável há 15/20 anos, quando era preciso esperar que os barcos chegassem ao porto mais próximo para contarem a história do que se passara em alto mar.


E como era a preocupação com o meio ambiente na náutica, algo que hoje deve ser generalizada? Na verdade, essa preocupação entre os velejadores já existia por causa da competição, porque afectava a navegação. Há pelo menos duas décadas que os velejadores reclamam pelo facto de pedaços de plástico, redes de pesca, cabos, enroscarem-se nas quilhas dos barcos, o que era um grande problema. Tinham de parar o barco, fazer uma manobra para poder retirar esses materiais que causavam a desaceleração. Para nós já era um problema, pois estava no meio náutico e afectava moralmente as pessoas. Agora está mais evidente, tem muito mais pessoas a falar sobre o assunto e, no caso específico desta edição da Volvo Ocean Race - que passou duas vezes ao largo da Madeira e do Porto Santo -, pela primeira vez há um programa específico sobre a sustentabilidade que é apoiado pelas Nações Unidas (http://cleanseas.org/) e pela Fundação Mirpuri. Há, inclusive, um barco em prova que ostenta o nome que é slogan da campanha, o ‘Turn the Tide on Plastic’ (mude a maré do plástico). É a primeira vez que num evento global, como Volvo Ocean Race, há uma mensagem de preocupação ambiental e que é levada aos portos e cidades por onde passa.


É a altura ideal para esta mensagem, tanto é que haverá muita gente que não se preocupa com estas questões, mas já era tempo? Exacto. O problema é que o problema marítimo começa em terra. Certas desatenções, certos maus hábitos que as pessoas em terra é que causam o problema no mar. Uma beata de cigarro no chão, num passeio, um cotonete que se atira na sanita, uma palhinha que deixe cair na rua ou deita ao lixo, sem separar entre plástico e orgânico, fatalmente vai parar ao mar. É em terra que devemos mudar os maus hábitos, porque todo o problema da poluição marinha começa em terra. E os hábitos devem ser mudados em cada um de nós, individualmente.

Há três vertentes dos programas de sustentabilidade estão a chamar a atenção: Reutilizar, Reciclar e Recusar. Esta última, que constitui um grande problema da sociedade actual do consumo, as pessoas podem recusar a usar o plástico quando vai às compras, ou então pode reutilizá-lo muitas vezes e não apenas uma utilização e vá parar ao lixo. Também pode-se reciclar e, sem querer demonizar o plástico, que é útil, o problema está na forma como nos desenvencilhamos dele. Temos que obrigar os fabricantes a repensar como embalam os seus produtos e se recusarmos como consumidores, é uma cadeia de atitudes que terá reflexos no mar e, no fim da cadeia, no nosso prato, na nossa alimentação. Porque o plástico - os cientistas calculam que haja 8 milhões de toneladas de lixo no mar, que equivale a um camião de lixo atirado ao mar a cada minuto - vai voltar à cadeia alimentar em pequenas partículas. Se as pessoas pensarem nisso, tiverem consciência disso...

Como olha a ligação - há quem diga que é pouca dado ser uma ilha - dos madeirenses ao mar? O facto de serem ilhas, já estão em contacto tão íntimo com o mar que isso já está na pele. Também, pelo que sei da história da Madeira, houve necessidade de se interiorizar, cuidar do interior da ilha. Mas agora há um regresso ao mar. Têm um embaixador da vela de altíssimo padrão, o João Rodrigues, veterano de sete Jogos Olímpicos, pessoa que viu ao longo da sua vida essas alterações aqui e em várias partes do mundo. Ele viu e vê essa degradação do ambiente marinho. Como um dos porta-vozes mais importantes da Região, não só porque ele inspira uma nova geração de velejadores, também por ter o conhecimento. A comemoração dos 660 anos do povoamento, é um bom momento para as pessoas, as autoridades, a sociedade em geral virarem-se para o mar novamente. Sei que já há muita gente a trabalhar na área da investigação científica, no Tecnopolo, no Instituto da Floresta e Conservação da Natureza, entre outros. Essa é uma tendência de futuro, porque começa-se a consciencializar que o problema é grave, não porque atrapalha uma regata, mas sim porque vai comprometer o nosso futuro.


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