DO TEXTO:
“Os filhos de Anaita”, onde Natália Correia brilhantemente conta a história de Karec que usava a poesia como arma de defesa...
Também na FC Natália Correia nada fica a dever aos meus preferidos Ray Bradbury, John Christopher, Robert Heinlein, Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin...
Por: Armindo Guimarães
Se na poesia Natália Correia era como peixe na água e, como tal, por isso mais conhecida e lembrada, várias são as contribuições que deixou no que ao romance se refere e, neste particular, à ficção cientifica, ramo literário que também abraçou, faceta quiçá esquecida ou apenas conhecida de uns quantos amantes da escrita cientifica na sua componente real ou imaginada sobre a sociedade ou os indivíduos.
Ora, também na ficção científica Natália Correia nada fica a dever aos meus preferidos Ray Bradbury, John Christopher, Robert Heinlein, Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Clifford D. Simak e tantos outros. É o que se pode constatar em “Os filhos de Anaita”, onde Natália Correia brilhantemente conta a história de Karec que usava a poesia como arma de defesa, a poesia como um valor que diferencia a humanidade das outras formas de vida. A poesia que tantas vezes diferencia Natália Correia daqueles que num mar de insónias trocam o sonho pelo pesadelo de se agarrarem freneticamente às coisas bem definidas feitas à medida do sagrado padronizado. Como admirador de Natália Correia, não posso resistir à tentação de, com a devida vénia, transcrever uma parte de tão admirável conto de ficção científica escrito por uma não menos admirável mulher.
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Os filhos de Anaita
Natália Correia
A última vez que isto aconteceu caiu uma chuva de lama vermelha. Foi no verão passado Karec andava pelas ruas passeando o seu ar de quem não acredita nos hospitais e nas prisões, aquela ofensiva ingenuidade que oferece o peito à bala na convicção de que a pistola vai disparar uma flor. É um distraído, dizem. Eu sou de outra opinião. Creio que a distracção de Karec é uma seríssima ocupação em qualquer coisa muito importante, algo de essencial e profundamente simples que os outros se proíbem de pensar por terem medo da simplicidade. Como se... por exemplo: como se Karec estivesse a assinar num mundo invisível e paralelo o tratado de paz de uma guerra permanente e estúpida que é o truque de que os homens se servem neste nosso mundo para iludirem a sua cobardia perante a assustadora grandeza de serem meramente homens. É por isso que a realidade, ou melhor, isso a que eles chamam a realidade começou a paramentar-se de sacerdote para converter, com a sua voz melíflua, o desertor Karec. Mas Karec respondia-lhe com a inextricável lógica do seu universo paralelo. Não houve entendimento possível. E agora a realidade colérica e legal mostra a Karec os caninos num sorriso policial onde brinca o diabinho lúbrico da condenação. Nenhum de nós (os poucos que acreditam na inocência de Karec) duvida do teor da sentença que vai ser hoje pronunciada. Estou a vê-lo com o seu ar de insultuosa inocência na frente dos juízes hepáticos, a irritá-los com aquela espécie de código de que o futuro tem a chave que é a sua maneira de falar.
Fio nesta altura que a voz da porteira cortou com o seu maquinal "bom dia sr. Lukner" o fio de considerações que eu tecia a propósito do meu amigo Karec a cujo julgamento ia assistir com a náusea de uma cumplicidade impotente. Ia contrariado mas prometera ao Arquipoeta levar-lhe notícias do julgamento cujo desfecho ele aguardava na sua cadeira de inválido com todo o sofrimento imaginável de um espírito que dera à luz o jovem Kardec treinando-o para uma verdade que ele estava a pagar com o martírio.
Bom dia, senhora Pasotti!
Mas não era a senhora Pasotti que ocupava o seu posto habitual, rodeada pelo enxame ranhoso das suas crias. O que eu via era daquela ordem de coisas que nos entram pelos olhos como uma pedrada e nos deixam o raciocínio em cacos. No banco onde a porteira costuma derramar as carnes de procriadora neolítica, sentava-se, com displicência social, um enorme crocodilo que, para tornar mais aberrativa a sua absurda intromissão no meu campo visual, fazia tricot por entre a gritaria de pequenos lagartos que ziguezagueavam no vestíbulo.
Dum pulo, alcancei a rua, procurando toda a espécie de razões que pudessem explicar a repulsiva visão, deixando intacta a minha sanidade mental.
É este maldito tempo – pensei. - Essa luz vermelha e sufocante que prenuncia uma tempestade, uma chuva de lama como no Verão passado.
Todas as coisas estão tocadas por esse facho congestivo, uma hemorragia vomitada pelas nuvens que, inflamadas e estáticas, avermelham o céu da cidade. Vejam as árvores, por exemplo, carregadas de folhas magentas. Parece que suam sangue e que vão dar um grito. Um grito por Karec.
Não pude levar mais longe as minhas especulações sobre a cena inquietante que presenciara, pois os meus olhos tropeçavam na sequência inaudita desse espectáculo.
Pelas portas do Banco, que ocupava o quarteirão fronteiro ao prédio onde eu habitava, saíam e entravam afobados jacarés com o ar de estarem escapando por uma unha negra a falências iminentes. Estaquei e, através dos vidros da porta de catavento, vi, por detrás dos guichés, crocodilos burocratas passando maços de notas a répteis impacientes que as apanhavam nas patas erguidas.
Atordoado, dei meia dúzia de passos e entrei no "snack", onde costumava tomar o pequeno almoço. Não. Não era possível. A monstruosidade prosseguia. Crocodilos inofensivos, perfeitamente sociais, cruzavam as patas, lendo o jornal e bebendo o seu café matutino.
Bom dia, sr. Luker! Chá, ou café com leite?
Era a voz familiar de Pepe que saía de uma bocarra escancarada em atenção servil por detrás do balcão. Por entre bocas escamosas, dois olhos laterais e mortiços pousavam no meu rosto testemunhando-me em réptil a simpatia humana e espanhola de Pepe.
"Meu Deus, eles falam", pensei, correndo para a rua com um vómito a arranhar-me a garganta. “São perfeitamente civis, talvez religiosos. Em que mundo estarei? Em que cidade?”
Procurei referências com os olhos. Era o cenário do costume. Lá estava a tabacaria. Lá estava o talho. Lá estavam as árvores vertendo sangue por Karec.
É verdade... Karec... O julgamento. Este asqueroso acidente atrasou-me. Tenho que apanhar um táxi. Lá vem um.
Fiz um sinal. O táxi parou. Mas apenas abri a porta verifiquei, já sem espanto mas com uma espécie de resignada angústia que um displicente sáurio estava sentado ao volante assobiando o êxito do disco dessa semana. Fechei a porta com estrondo e afastei-me do táxi. Impossível encerrar-me com um réptil naquele espaço exíguo, ser conduzido por ele, falar do tempo, do futebol, da política, pois devia ser um crocodilo falador como todos os motoristas.
Decidi fazer o caminho a pé. Contraí os maxilares e avancei. Em vão os meus olhos perscrutavam na multidão uma forma humana. Banhados pelo vermelho tenso que tudo envolvia como um papel celofane encarniçado, crocodilos transeuntes, crocodilos logistas, crocodilos barbeiros, aligátores classe-média, caimões populares, jacarés administrativos conduzidos em bentleys particulares por sardões fardados, salamandras piedosas que se benziam quando passavam pelas igrejas orquestravam a vida citadina com uma naturalidade cívica exemplar. "Com mil raios!" mastiguei entre os maxilares cada vez mais apertados”. Só haverá crocodilos na cidade? Crocodilos civilizados, talvez astrónomos, talvez Einsteins. E eu? Quem me diz que também não estou transformado num crocodilo? A verdade é que passo junto desses répteis imundos e eles não têm um movimento de repulsa pela minha configuração humana. Olham-me como se fosse um deles”.
Esta ideia lançou-me no auge do pânico. Fixei as mãos e a carnadura pálida que as revestia percorrida por veias azuis deixou-me sossegado. Mas não por muito tempo. Uma nova suspeita beliscou-me o pensamento. "E o rosto? Quem te diz que não estás a pavonear pelas ruas as medonhas fuças de um jacaré!" Um espelho, depressa! Onde está um espelho?
Corri para uma montra e coloquei-me junto da vitrina de modo a que ela reflectisse a minha imagem. Foi um alívio. Por entre lampreias de ovos, pirâmides de chocolate e buquês de frutas cristalizadas recortava-se a minha forma humana contrastando escandalosamente com os crocodilos que, em posição vertical se apressavam nas minhas costas para um destino de cidadãos rotineiros.
Estava eu louco? Ou a loucura apossara-se da cidade deixando-me apenas a mim a crueldade de uma lucidez solitária?
A situação atingiu uma delirante efervescência quando ao entrar na sala de audiência, no preciso momento em que o público constituído por jovens sáurios estudantes de Direito e salamandras coleccionadoras melodramáticas de escândalos públicos se levantava à entrada de um solene jacaré que foi ocupar a cátedra do juiz. Por entre essa floresta de répteis distingui a clareira humana do meu amigo Karec, ele mesmo com os seus cabelos cor-de-mel, as suas espáduas nervosas, a sua palidez longínqua e os seus olhos alheados que passeavam pela assistência como se deslizassem por uma paisagem amena. [...]
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Também na FC Natália Correia nada fica a dever aos meus preferidos Ray Bradbury, John Christopher, Robert Heinlein, Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin...
Por: Armindo Guimarães
Se na poesia Natália Correia era como peixe na água e, como tal, por isso mais conhecida e lembrada, várias são as contribuições que deixou no que ao romance se refere e, neste particular, à ficção cientifica, ramo literário que também abraçou, faceta quiçá esquecida ou apenas conhecida de uns quantos amantes da escrita cientifica na sua componente real ou imaginada sobre a sociedade ou os indivíduos.
Ora, também na ficção científica Natália Correia nada fica a dever aos meus preferidos Ray Bradbury, John Christopher, Robert Heinlein, Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Clifford D. Simak e tantos outros. É o que se pode constatar em “Os filhos de Anaita”, onde Natália Correia brilhantemente conta a história de Karec que usava a poesia como arma de defesa, a poesia como um valor que diferencia a humanidade das outras formas de vida. A poesia que tantas vezes diferencia Natália Correia daqueles que num mar de insónias trocam o sonho pelo pesadelo de se agarrarem freneticamente às coisas bem definidas feitas à medida do sagrado padronizado.
Como admirador de Natália Correia, não posso resistir à tentação de, com a devida vénia, transcrever uma parte de tão admirável conto de ficção científica escrito por uma não menos admirável mulher.
Os filhos de Anaita
Natália Correia
Fio nesta altura que a voz da porteira cortou com o seu maquinal "bom dia sr. Lukner" o fio de considerações que eu tecia a propósito do meu amigo Karec a cujo julgamento ia assistir com a náusea de uma cumplicidade impotente. Ia contrariado mas prometera ao Arquipoeta levar-lhe notícias do julgamento cujo desfecho ele aguardava na sua cadeira de inválido com todo o sofrimento imaginável de um espírito que dera à luz o jovem Kardec treinando-o para uma verdade que ele estava a pagar com o martírio.
Bom dia, senhora Pasotti!
Mas não era a senhora Pasotti que ocupava o seu posto habitual, rodeada pelo enxame ranhoso das suas crias. O que eu via era daquela ordem de coisas que nos entram pelos olhos como uma pedrada e nos deixam o raciocínio em cacos. No banco onde a porteira costuma derramar as carnes de procriadora neolítica, sentava-se, com displicência social, um enorme crocodilo que, para tornar mais aberrativa a sua absurda intromissão no meu campo visual, fazia tricot por entre a gritaria de pequenos lagartos que ziguezagueavam no vestíbulo.
Dum pulo, alcancei a rua, procurando toda a espécie de razões que pudessem explicar a repulsiva visão, deixando intacta a minha sanidade mental.
É este maldito tempo – pensei. - Essa luz vermelha e sufocante que prenuncia uma tempestade, uma chuva de lama como no Verão passado.
Todas as coisas estão tocadas por esse facho congestivo, uma hemorragia vomitada pelas nuvens que, inflamadas e estáticas, avermelham o céu da cidade. Vejam as árvores, por exemplo, carregadas de folhas magentas. Parece que suam sangue e que vão dar um grito. Um grito por Karec.
Não pude levar mais longe as minhas especulações sobre a cena inquietante que presenciara, pois os meus olhos tropeçavam na sequência inaudita desse espectáculo.
Pelas portas do Banco, que ocupava o quarteirão fronteiro ao prédio onde eu habitava, saíam e entravam afobados jacarés com o ar de estarem escapando por uma unha negra a falências iminentes. Estaquei e, através dos vidros da porta de catavento, vi, por detrás dos guichés, crocodilos burocratas passando maços de notas a répteis impacientes que as apanhavam nas patas erguidas.
Atordoado, dei meia dúzia de passos e entrei no "snack", onde costumava tomar o pequeno almoço. Não. Não era possível. A monstruosidade prosseguia. Crocodilos inofensivos, perfeitamente sociais, cruzavam as patas, lendo o jornal e bebendo o seu café matutino.
Bom dia, sr. Luker! Chá, ou café com leite?
Era a voz familiar de Pepe que saía de uma bocarra escancarada em atenção servil por detrás do balcão. Por entre bocas escamosas, dois olhos laterais e mortiços pousavam no meu rosto testemunhando-me em réptil a simpatia humana e espanhola de Pepe.
"Meu Deus, eles falam", pensei, correndo para a rua com um vómito a arranhar-me a garganta. “São perfeitamente civis, talvez religiosos. Em que mundo estarei? Em que cidade?”
Procurei referências com os olhos. Era o cenário do costume. Lá estava a tabacaria. Lá estava o talho. Lá estavam as árvores vertendo sangue por Karec.
É verdade... Karec... O julgamento. Este asqueroso acidente atrasou-me. Tenho que apanhar um táxi. Lá vem um.
Fiz um sinal. O táxi parou. Mas apenas abri a porta verifiquei, já sem espanto mas com uma espécie de resignada angústia que um displicente sáurio estava sentado ao volante assobiando o êxito do disco dessa semana. Fechei a porta com estrondo e afastei-me do táxi. Impossível encerrar-me com um réptil naquele espaço exíguo, ser conduzido por ele, falar do tempo, do futebol, da política, pois devia ser um crocodilo falador como todos os motoristas.
Decidi fazer o caminho a pé. Contraí os maxilares e avancei. Em vão os meus olhos perscrutavam na multidão uma forma humana. Banhados pelo vermelho tenso que tudo envolvia como um papel celofane encarniçado, crocodilos transeuntes, crocodilos logistas, crocodilos barbeiros, aligátores classe-média, caimões populares, jacarés administrativos conduzidos em bentleys particulares por sardões fardados, salamandras piedosas que se benziam quando passavam pelas igrejas orquestravam a vida citadina com uma naturalidade cívica exemplar.
"Com mil raios!" mastiguei entre os maxilares cada vez mais apertados”. Só haverá crocodilos na cidade? Crocodilos civilizados, talvez astrónomos, talvez Einsteins. E eu? Quem me diz que também não estou transformado num crocodilo? A verdade é que passo junto desses répteis imundos e eles não têm um movimento de repulsa pela minha configuração humana. Olham-me como se fosse um deles”.
Esta ideia lançou-me no auge do pânico. Fixei as mãos e a carnadura pálida que as revestia percorrida por veias azuis deixou-me sossegado. Mas não por muito tempo. Uma nova suspeita beliscou-me o pensamento. "E o rosto? Quem te diz que não estás a pavonear pelas ruas as medonhas fuças de um jacaré!" Um espelho, depressa! Onde está um espelho?
Corri para uma montra e coloquei-me junto da vitrina de modo a que ela reflectisse a minha imagem. Foi um alívio. Por entre lampreias de ovos, pirâmides de chocolate e buquês de frutas cristalizadas recortava-se a minha forma humana contrastando escandalosamente com os crocodilos que, em posição vertical se apressavam nas minhas costas para um destino de cidadãos rotineiros.
Estava eu louco? Ou a loucura apossara-se da cidade deixando-me apenas a mim a crueldade de uma lucidez solitária?
A situação atingiu uma delirante efervescência quando ao entrar na sala de audiência, no preciso momento em que o público constituído por jovens sáurios estudantes de Direito e salamandras coleccionadoras melodramáticas de escândalos públicos se levantava à entrada de um solene jacaré que foi ocupar a cátedra do juiz. Por entre essa floresta de répteis distingui a clareira humana do meu amigo Karec, ele mesmo com os seus cabelos cor-de-mel, as suas espáduas nervosas, a sua palidez longínqua e os seus olhos alheados que passeavam pela assistência como se deslizassem por uma paisagem amena. [...]
Sobre Natália Correia
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