Três gajos do Porto numa viagem ao passado

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DO TEXTO: Há memórias que vale a pena revisitar. Refiro-me, por exemplo, àquelas da nossa infância, como a que eu, o Tono e o Zeca revisitamos em Agosto do ano
Composição de fotos dos amigos Zeca, Armindo e Tono em algumas artérias do Porto.



"Todos nós vivemos do passado, e pelo passado morremos."
Goethe

Se a viagem ao futuro é ainda discutível, o mesmo não se poderia dizer sobre a viagem ao passado


Por: Armindo Guimarães
 

Os ficcionistas, especialmente os da temática científica, da qual sou adepto, frequentemente introduzem nos seus contos a máquina do tempo como meio de transporte para o futuro ou para o passado. Autores como Robert Heinlein, Isaac Asimov, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Philip K. Dick, John Christopher, entre outros, são exímios condutores da máquina temporal. Um exemplo notável é o filme Back to the Future (PT: Regresso ao Futuro / BR: De Volta Para o Futuro), no qual o adolescente Marty McFly tem como amigo um “cientista louco”, o Dr. Emmett L. Brown, apelidado Doc, que inventa uma máquina do tempo a partir de um automóvel da marca DeLorean. Marty é acidentalmente transportado de 1985 para o ano de 1955, onde encontra uma versão mais jovem dos seus pais e precisa de uni-los para garantir que ele próprio possa... nascer.

Não discutiremos aqui a possibilidade de um dia termos à nossa disposição uma máquina que nos transporte para outro tempo, seja ele passado ou futuro. Provavelmente, não chegaríamos a nenhuma conclusão, mesmo que tivéssemos diante de nós uma cassete áudio criada pela Philips em 1963, um disco de vinil (LP), um Compact Disc (CD) e uma memória USB (PEN), enquanto recebíamos por telemóvel uma foto tirada há segundos, a milhares de quilómetros de distância.

Reflectindo sobre o assunto (cada tolo com a sua mania), concluí que, enquanto a viagem ao futuro é ainda discutível, o mesmo não se pode dizer sobre a viagem ao passado, mesmo que não existam máquinas para tal. O passado já foi, já aconteceu. É como um arquivo sempre disponível, pronto a ser consultado. O importante é que esteja devidamente ordenado por episódios e respectivas datas, para evitarmos visitas a tempos passados que podem ser desinteressantes ou até inconvenientes.


Mindo e Tono à mesa de um restaurante do Porto.


Contudo, há memórias que vale a pena revisitar. Refiro-me, por exemplo, àquelas da nossa infância, como a que eu, o Tono e o Zeca revisitamos em Agosto do ano passado. O Zeca, que vive no Canadá há anos, veio à “terrinha” de férias, e decidimos aproveitar. Marcámos encontro no coração do Porto, à porta da Capela das Almas, na movimentada Rua de Santa Catarina. Não era para ir à missa, mas para almoçarmos na Rampinha, que fica mesmo em frente. Escusado será dizer que a conversa que acompanhou as tripas à moda do Porto, regadas com um verde tinto à maneira, abordou o passado, o presente e o futuro.

A Viagem ao Passado


Enquanto saíamos, o Zeca apontou para as janelas da Rampinha, recordando como, na infância, espreitávamos por uma delas, semiaberta, para assistir ao Bonanza, uma célebre série de cowboys dos anos 60. No entanto, tudo não passou de memórias, pois, naquele dia, as janelas estavam fechadas e nem sequer havia televisão a transmitir o Bonanza.

Reencontros e Promessas de Vingança


Cá fora, o próprio dono da Rampinha prontificou-se a tirar-nos duas fotos para a posteridade mesmo em frente da já referida Capela das Almas onde eu fui batizado, tendo como meu padrinho o menino Sebastião Oliveira, na altura com 10 aninhos e que com outros tantos em cima passaria a ser conhecido pelas raparigas da rua de Santa Catarina e arredores como o James Dean portuense, com o inseparável pente preto de plástico daqueles inquebráveis que eram vendidos por vendedores ambulantes na Estação de São Bento e que ele sempre trazia no bolso de trás das suas jeans, pronto a dar uma penteadela aos seus cabelos louros sempre que avistava ao longe a aproximação de uma gaja jeitosa. Enfim, coisas de engatatão, é claro!

Zeca, Mindo e Tono posando para posteridade, junto à Capela das Almas, no Porto.


Acontece que foi a partir da pose para as duas fotos que a nossa viagem no tempo começou. É que, o filho da mãe do Tono, enquanto eu tentava a melhor posição para a objetiva ensaiando um sorriso à artista de cinema, o gajo do carago vai daí e, como quem não quer a coisa, apalpou-me o ofedeguines, que o mesmo é dizer o rabo, perante a passividade do Zeca que se ria como um perdido porque não era o rabo nem a honra e dignidade dele que estavam em causa.

Como, volvidos tantos anos, iria pensar que o sacana do Tono, quase às portas da Terceira Idade, iria fazer, o que na infância fazíamos quando queríamos pegar com este ou aquele amigo e que sempre redundava em confrontos físicos, cada qual se julgando mais macho do que o outro? A minha vingança teria que ser pior do que “A vingança da mulher dos tremoços”, expressão que na infância o Zeca muito gostava de aplicar quando alguém o feria na sua sensibilidade de homem másculo e dinâmico.

Como depois das fotos tínhamos combinado passar pela travessa das Almas que fica por trás da Capela com o mesmo nome, guardei para esse local aquela que seria a minha desforra com o Tono, como as de antigamente.

Chegados à minha rua, lembrei-me que tal como antigamente, para defrontar o Tono, que era o mais temível de todos para a porrada, nada melhor que me valer de uns calhaus, daí a expressão muito usada na época “anda para a minha rua que há muitos calhaus”, mas infelizmente na travessa já não havia calhaus como antigamente, motivo por que decidi adiar (esquecer nunca, pois macho que é macho e ainda para mais tripeiro de gema, que o mesmo é dizer natural do Porto, nunca esquece uma vingança) e, por isso, para disfarçar o quanto me ia na alma e o que psicologicamente ainda sentia no meu ofedeguines, sugeri que tirássemos fotos junto daquela que tinha sido a casa onde vivi até aos 23 anos, agora desabitada e degradada, como degradadas estão, infelizmente, quase todas as casas da rua.

O confronto entre o Tono e eu seria uma boa oportunidade para mais uma vez viajarmos no tempo regressando ao passado, tendo connosco o Zeca para assistir ao duelo incentivando com “Dá-lhe, carago! Dá-lhe, carago!” como devia ser, pois apartar bulhas não era com a malta. Para isso estavam os vizinhos que saiam de casa esbaforidos para acudir à rapaziada que quando não jogavam no passeio à sameira (com as cápsulas das garrafas de cerveja), à patela (também conhecida pelo jogo da macaca) e a saltar à corda com as meninas da rua ou a jogar à bola partindo os vidros das janelas, ou ainda à casquinha de laranja porta a porta, optavam pela porrada por dá-cá-aquela-palha.

O jogo da casquinha de laranja porta a porta  boas para fazerem de balizas, mas tal não foi possível porque não havia a indispensável casca de laranja e, pensando bem, foi melhor assim, caso contrário, não sei o que pensaria quem na altura por ali passasse e visse três cinquentões a brincarem com uma casca de laranja, se bem que hoje em dia, ao que se vê por aí, já ninguém se admire de nada. Mas atenção que a casquinha de laranja porta a porta é um jogo que tem que se lhe diga quanto a técnica, regras e até quanto à própria casca de laranja que deve respeitar os requisitos mínimos no que ao tamanho e espessura se refere, conforme mais detalhadamente se pode constatar em "A malta da Invicta é do carago!".

Com as fotos da praxe tiradas na travessa das Almas findava o nosso encontro e como tal nada faria prever que para além daquela viagem ao passado proporcionada pelo Tono e da qual eu fui vítima e o Zeca testemunha oportunista porque desatou à gargalhada em vez de repreender o prevaricador, lógico que oportunidades para outras viagens no tempo, neste caso ao passado, estavam fora de questão. Assim pensei eu e o Tono também, mas pelos vistos o mesmo não pensou o Zeca, pois que em plena rua Guedes de Azevedo, quase a chegar ao Silo Auto, onde eu tinha o meu carro estacionado, vai daí e desafia-me para, com ele, cantarmos uma do Roberto Carlos e logo a seguir uma do Duo Ouro Negro como antigamente. Imaginem só a figura que eu e o Zeca fizemos em público: os dois no passeio, lado a lado, a cantar O Negro Gato e Au revoir Sylvie.

Esse momento foi, sem dúvida, a nossa segunda viagem no tempo a seguir ao apalpão que o Tono me deu no ofedeguines e o meu receio era que a cantata se prolongasse como na nossa infância acontecia, não devido a quem passava, mas sim porque não queria nada, decorridos tantos anos, estar a aturar as exigências do Zeca que sempre me dava cabo da cabeça porque eu nunca atinava com as danças de pernas que o Raul Indipwo e o Milo MacMahon davam enquanto cantavam. Isto já para não falar na hipótese de poder estar por perto o Sebastião Oliveira que na certa não iria perder a oportunidade de fazer jus à sua veia de empresário artístico que se comprovou no futuro que no passado teve como primeiros artistas o Duo Férias ao Sol como então se chamava o duo composto por mim e pelo Zeca e que o Sebastião queria ao fim da força que concorressem à celebérrima Rádio Festival, facto que nunca aconteceu porque eu e o Zeca, não sabíamos o porquê, mas sempre tivemos a sensação que o empresário artístico ainda em formação estava connosco numa de experiência pro profissional mas também de gozo, até mesmo quando vendo tal hipótese fugir-lhe, tentou a do seu afilhado Mindo na Rádio Festival numa de Roberto Carlos portuense cantando “Quero que vá tudo pro inferno”. Portanto, ficou tudo em águas de bacalhau. Mas nunca se sabe as voltas que o mundo dá.

É que, como a reconstituição das bandas de música está na ordem do dia, quem sabe um dia o Zeca e o Mindo reaparecem com o Duo Férias ao Sol, tendo como empresário artístico o Sebastião que os levará aqui e além-fronteiras.

Epílogo


Este reencontro foi mais do que uma viagem no tempo; foi uma celebração da amizade e das memórias que moldaram as nossas vidas. Ficou a promessa de novos encontros. Afinal, o apalpão do Tono não pode ficar impune, e a vingança, certamente, será de arromba!


Composição: Composição: Zeca e Armindo sobre a capa de um disco do Duo Ouro Negro.
O Duo Férias ao Sol 


Zeca e Mindo (Duo Férias ao Sol) Agosto 2011

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7 Comentários

Comentários

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  1. Alba Maria Fraga Bittencourt9 de março de 2012 às 02:32

    Querido Armindo!

    Recordar é Viver...
    Que maravilha de texto, tem tanta vida que pude ver vocês meninotes fazendo suas brincadeiras e travessuras....
    Muito linda essa amizade de vocês.
    Fiquei emocionada ao reviver tuas recordações... a Capela das Almas onde foste batizado....a casa que moraste até os 23 anos....as brincadeiras de infância com teus amigos Tono e Zeca...as canções Negro Gato.. Au Revoir Sylvie.... a participação do Amigo Sebastião em tua vida..e tu na Rádio Festival, dando uma de Roberto Carlos, cantando "Quero que vá tudo pro inferno". Certamente foi daí que ficaste fã do Nosso Rei...
    Tudo muito lindo!!!
    Dei boas gargalhada ao ler a narração do apalpão no ofedeguines....
    Enquanto escrevia, estava a escutar os vídeos...me emocionei, pois eu via tu e o Zeca,cantando as canções em plena Rua Guedes de Azevedo,como dois moleques.
    As fotos estão maravilhosas...os vídeos lindos....
    Parabéns Querido Armindo, mais uma vez nos encantas com teus textos.
    Um grande abraço.
    Alba Maria

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  2. Olá maninho!

    É admirável como você escreve bem, como consegue lembrar o passado com tantos detalhes.
    Adorei o artigo com o encontro dos amigos.
    Deve ter sido muito bom!

    Algumas palavras, eu não sei o significado mas entendi. Agora essa do ofedeguines, foi o máximo.
    Nunca vi esse termo tão comprido para uma palavra tão pequena...Foi termo inventado por vocês?
    Maninho você teve uma infância muito boa!

    Como gostaria de ter visto vocês cantando na rua, em pleno dia!Divertido.

    Gostei dos vídeos embora já os conheça.

    Parabéns maninho, mais uma vez você merece a nota máxima.

    Beijos,
    Carmen Augusta

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  3. Maninho, esqueci de falar das fotos.
    Ficaram ótimas!
    Copiei todas...

    Beijos,
    maninha

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  4. Ola Mindo!realemente tu es um gajo que sempre soubesses contar as tua recordaçoes de mocidade e a tuas amizades com os teus amigos que cada vez que eu lei-o tudo o que escreves fico comovido de uma maneira que até me parece que eu tambem participei nessas aventuras.Mindo tu es formidavel e continua a nos fazezr sonhar com estas coisas porque realemente voltar ao passado a mim me poe bem disposto.Abraços

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  5. Ola Mindo!realemente tu es um gajo que sempre soubesses contar as tua recordaçoes de mocidade e a tuas amizades com os teus amigos que cada vez que eu lei-o tudo o que escreves fico comovido de uma maneira que até me parece que eu tambem participei nessas aventuras.Mindo tu es formidavel e continua a nos fazezr sonhar com estas coisas porque realemente voltar ao passado a mim me poe bem disposto.Abraços

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  6. Desde o dia em k assumi ser teu protector,acompanhando o teu desenvolvimento,verificava o teu estimulo escolar,a criatividade,a comunicação,para fazeres as tuas próprias escolhas,atravéz da tua extraordinária memória,este e outros escritos são a forma como explorasa variedade de assuntos,alguns devidamente documentados.Como é de teu conhecimento tenho muita altivez na intimidade que nos liga.Parabéns pelo excelente texto e por me fazeres recuar no tempo,ver a casa onde ambos nascemos(desabitada á vários anos).Bem haja!

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  7. Meus Preclaros Gajos, Zeca, Tono e Mindo!

    Extremamente linda a relação de amizades entre vcs!

    Assim penso:

    Amigo ou amiga é aquele(a) que você admira, ama e confia, não obstante os seus defeitos. Sabe que ele(a) sempre terá uma palavra de carinho para lhe dar, seja na hora da turbulência, seja na hora da bonança. Nos acompanha em todos os momentos de sua vida, sem o menor interesse que não o de trazer-nos a sua sincera e fraterna companhia, sob quaisquer circunstâncias. Antecipa sua presença; dá conselhos; adverte e reprime, se for preciso e com moral. É silencioso em sua maneira de ser, mas faz muito barulho, se for preciso, exemplificando com o coração.

    O que eu poderia dizer-lhes é que pra mim, são exemplos de verdades incontestes, acerca do que seria verdadeiras amizades verdadeiras.

    Parabéns pelo encontro emocinante!

    O que me fez navegar, juntamente com vcs, foi também ter assistido o seriado Bonanza o qual como também não tínhamos TV, assistíamos na casa de quem tinha.

    E aí vai minhas homenagens à estes gajos portuenses, mesmo porquê, um não acredito que seja portuense, mas sim brasilense(de alma, mas é!)

    http://www.youtube.com/watch?v=x-pxjS6CZH8
    http://www.youtube.com/watch?feature=fvwp&NR=1&v=8SiAdCM8G5I
    http://www.youtube.com/watch?v=jEWbAR2fSxE&feature=related

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