O Patinho Feio e os Nossos Espelhos

Como o conto O Patinho Feio explica a formação da nossa autoimagem através da teoria psicanalítica de Jacques Lacan e a influência do outro.
Cartaz ilustrativo do conto O Patinho Feio com a frase "A gente se enxerga com os olhos dos outros".

Como o conto de Andersen reflete a construção da nossa identidade

"A imagem que temos de nós é moldada pelo olhar dos outros"
Vímara Porto

Por: Francisco Neto Pereira Pinto*

O conto “O Patinho Feio”, de Hans Christian Andersen, permanece profundamente atual quase 200 anos após a sua publicação. A sua narrativa vai muito além de uma simples história infantil, servindo como um poderoso reflexo sobre a construção da identidade humana. Como nos tornamos quem somos? A resposta, sugere a história, reside largamente nas relações que estabelecemos com os que nos rodeiam – da família à sociedade em geral.

A jornada do patinho rejeitado pela sua aparência diferente, que foge e sofre até ser acolhido por cisnes, é a metáfora central. O momento de virada ocorre quando, ao ver o seu reflexo na água, ele se reconhece não como um pato feio, mas como um belo cisne. A questão crucial que fica é: o que mudou realmente? A sua essência ou a forma como ele passou a se ver através de um olhar admirativo?

A grande lição é que nos enxergamos com os olhos dos outros. O patinho sempre foi um cisne; a perceção de feiura foi um constructo social imposto por quem o rodeava. Se tivesse sido amado e valorizado desde o início, a sua autoimagem teria sido positiva desde sempre. Esta jornada é, no fundo, a jornada de todos nós.

O psicanalista francês Jacques Lacan explora precisamente este conceito no seu texto “O estádio do espelho como formador da função do eu”. Lacan explica que a nossa identidade é estruturada através da relação inicial com os nossos cuidadores e, subsequentemente, com a sociedade. Antes mesmo de nascermos, expectativas e um nome nos são atribuídos, e é com esses elementos externos que nos identificamos. Como explica o psicanalista Jorge Forbes, ninguém escolhe o próprio nome, mas é através dele que responde “sou eu” quando é chamado.

Aprendemos a amar-nos quando somos amados. Quando somos alvo de desprezo, a tendência é interiorizarmos esse sentimento. Felizmente, o patinho encontrou um novo grupo que o admirou, transformando radicalmente a sua perceção de si mesmo. Pela primeira vez, sentiu-se belo e radiante de alegria.

Esta história representa-nos a todos, individual e coletivamente. Para pais e educadores numa sociedade que cultua a perfeição, a pergunta é inevitável: o que veem as crianças que cuido quando se olham ao espelho que lhes proporciono? Amor e valorização são fundamentais, sem contudo fomentar o orgulho vazio.

E o que mostra o grande espelho da cultura? Como são representadas as pessoas com deficiência, negras, indígenas ou de outras minorias historicamente marginalizadas? Ser patinho feio ou belo cisne não é apenas uma questão de esforço pessoal, mas também de construções coletivas. Que este conto atemporal nos ajude, enquanto sociedade, a construir espelhos mais gentis e acolhedores para as futuras gerações.

*Francisco Neto Pereira Pinto é professor universitário, psicanalista e escritor de obras infantis. É autor de “O menino que selecionava sabores” e “Olha aquele menino, mamãe!”.
Nota do Editor – Portal Splish Splash: Este artigo transcende a análise literária, tocando num dos pilares do desenvolvimento humano. A relevância do "Patinho Feio" é, de facto, atemporal, funcionando como um espelho onde a sociedade pode – e deve – observar as suas próprias dinâmicas de inclusão e valorização. A reflexão sobre que espelhos estamos a criar para as nossas crianças é, hoje mais do que nunca, urgente e fundamental.
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