Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Vou almoçar pra banda do meio dia

Lisboa, 31 de Maio
Subia no elevador do Chão do Loureiro, quando levei com uma viola na cabeça. Foi ontem à tarde. Vinham um rapaz e uma rapariga, com uma viola enfiada num saco sintético, e eu empertiguei-me de imediato, receoso de que me tivessem rasgado uma orelha. Eles nem repararam. Até que começámos a subir, eu ainda sem saber como me indignar devidamente, e, ao ver a poeira dos vidros correr do lado de fora do elevador, a rapariga chegou a uma conclusão. “Olha, está a chover”, disse, num falar arrastado – e, durante os segundos que decorreu o resto da viagem, os dois esforçaram-se numa conversa desconexa sobre a necessidade de irem buscar uma criança à escola e a urgência de levarem uma idosa (pareceu-me) ao centro de saúde e outras responsabilidades que de repente lhes pesavam e não era seguro que pudessem dominar.
Lembrei-me de tantos toxicodependentes que conheci ao longo da vida, os arrumadores e os colegas, os amigos e até os familiares. A verdade, percebo-o agora distintamente, é que não vinham todos do mesmo lugar. Mesmo que fosse possível agrupá-los, haveria sempre pelo menos dois tipos: os toxicodependentes vindos do tédio e os toxicodependentes vindos do desejo. Talvez fossem capazes das mesmas coisas. Num dia de ressaca, pode até acontecer que ambos filassem a carteira à mãe ou assaltassem uma velhota na rua (ou pior). A substância que os mantém sob influência é a mesma. Mas uns mergulharam na droga por puro diletantismo, talvez alguma revolta e sobretudo uma grande dose de desinteresse. Já outros tombaram aos pés da própria tarefa do viver, angustiados por não se sentirem à altura dela.
Não são necessariamente mais simpáticos. Um toxicodependente vindo do desejo descamba facilmente para o moralismo, o que é pior ainda do que a adulação. Um toxicodependente vindo do desejo pode ser tão moralista e tão chato, na ânsia de se provar homem, que encontrar um toxicodependente vindo do tédio, entretido com as suas coisas de arrumar o próximo carro e acumular dinheiro suficiente para a dose e a pensão, chega a parecer um alívio. Mas é principalmente preguiça. Os diletantismo tem imensos méritos, mas não aqui. O desejo pode ser ainda mais avassalador e tenebroso do que ele. E o que nós sabemos, e por isso precisamos de dizer tantas vezes a nós próprios que não é assim, é que, mesmo não podendo ser o toxicodependente vindo do tédio, podíamos ser aquele que vem do desejo.
Tenho de escrever mais sobre pessoas. Cada vez me apetece mais escrever sobre pessoas.
A M., por exemplo. Levei-a a almoçar à Teresa, esta tarde. Que menina e que pessoa bonita está a M. Aos três anos disse-nos que queria ser bailarina e hoje, que tem 18, é bailarina. Entretanto, trabalhou como uma condenada, sofreu e superou lesões, triunfou em audições e ficou à porta de outras. A sua história é a da luta em defesa de um talento e de uma arte que, muitas vezes, já nem para as estreias mais auspiciosas consegue reunir 40 pessoas. E, contudo, a M. continua. Numa companhia, ganhava 70 euros por mês e fazia um monte de papéis. Noutra prometeram-lhe o ordenado mínimo, mas entretanto faltou o financiamento. Mesmo assim, aqui há uns tempos juntou-se a um colega e foi limpar o local onde ensaiam, para fazer uma surpresa ao director. Este mantém a companhia aberta porque a fundou com a falecida mulher. Mas também é um idealista, inimigo da procura de financiamento e da própria lei do mecenato, pelo que os dias estão contados. A M., essa, levanta os olhos para o futuro e sonha com um projecto para ajudar os jovens artistas e os sem-abrigo. Descreve-me a sua ideia e eu pergunto-lhe: “Que bonito, M. E de onde pensas poder tirar o teu rendimento?” E ela: “Se calhar terei de fazer outras coisas ao mesmo tempo...”
É um tratado sobre os sonhos de infância, a M. Podia escrever-se um romance sobre a M. Ou sobre o N. Fez-me uma tatuagem, sugerido pela Rita, e, quando eu o vi, um homem grande e forte, com uma pose de durão e um olhar de menino, gostei logo dele. Naquele dia, contou-me da sua cadela. Vivia com ele desde cachorrinha e, agora, estava a morrer. Toda a vida dele gravitava em torno daquela cadela. As namoradas tinham passado, a cadela era sempre a mesma. Quando tinha de ir ao estrangeiro, a convenções ou concursos, esforçava-se por regressar o mais depressa possível. Entretanto, sabia que tinha de a mandar abater. O fim-de-semana seguinte seria o último. Iriam à praia. E, agora que nos reencontrávamos, tinha apenas uma certeza: não queria mais cães. Queria viajar. Queria progredir na carreira. Então, saímos para a praça, veio um pequeno cocker spaniel, pela trela de um rapaz, e o N. fez um brevíssimo instante de silêncio. Nem olhou para o bicho, mas eu senti que as pernas lhe tremiam.
Podia escrever-se um romance também sobre o N., o homenzarrão que foge da memória da sua cadela. Como sobre a M. Como sobre aqueles dois toxicodependentes vitimados pelo desejo. Ou sobre este taxista povoado de ódio, em cujo táxi viajo a escrever mentalmente este texto, e que em dez minutos já insultou um tipo da Uber, um tipo dos tuk-tuks, a irmã que lhe telefonou a meio da viagem e o tipo da EMEL que não nos abriu a cancela depressa. Seria um thriller. As pessoas também têm isso: às vezes são thrillers.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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