Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Não seja demais

Campanhã-Santa Apolónia, 26 de Maio
E depois há isto de, sem anúncio, passarmos a comover-nos com quase tudo. Como me aconteceu com aquela senhora da loja das sopas, ainda ontem, frente à qual parou uma rapariga bem vestida, a perguntar os preços muito bem perguntadinhos, e que apesar disso a senhora tratou com dignidade, evitando derrapar para o habitual espezinhamento dos medíocres. Ou como com aquele rapaz que vi no metro aqui há dias, com um ar de gangster, e que foi o único a dar uma esmola ao cego.
Não tinha ar de gangster por ser negro e grande. Tinha ar de gangster porque se vestia como um rapper de Inglewood, com sapatos de basquetebol vermelhos, pulseiras douradas da bijutaria mais pindérica e um ar de mauzão de fazer inveja ao Snoop Dog e aos outros dogs. Agarrei melhor o telemóvel e tudo. E, porém, quando o cego passou, lamuriando-se, foi o único em toda a carruagem a levar a mão ao bolso, logo disfarçando para ninguém perceber que tinha coração.
Como me comoveu aquele rapaz. E como me comoveu aquele senhor de anteontem, na sala de espera da estação de TV onde seríamos entrevistados um a seguir ao outro (e ambos depois do Paulo de Carvalho). Como me comoveram os seus sapatinhos modestos, confortáveis porque é preciso estar preparado, ou o seu fatinho de mau corte, azul-escuro para poder combinar com camisas diferentes e parecer um fato novo. Como me comoveram os seus gestos nervosos, porque nunca tinha aparecido na televisão mas agora já ali estava e não podia voltar atrás. Como me comoveu o seu smartphone barato, telefonema atrás de telefonema, dando-se ares de importância:
– Vou entrar em directo agora. Sou eu e o Paulo de Carvalho, e também está aqui um senhor de barba.
– Liga a televisão. Sou eu e o Paulo de Carvalho, e também está aqui um tipo  de barba.
– Oh, é um programa, o que é que isso tem? Sou eu e o Paulo de Carvalho, e também está aqui um rapaz de barba.
Ou aquela manicura brasileira do cabeleireiro onde me ocorreu arranjar as unhas campestres, na semana passada. A Rita: como me comoveu a Rita, eu ali com as mãos enfiadas na parafina (creio que era parafina), meio constrangido porque nunca tinha ido a uma manicura, meio decidido porque tinha as mãos que era uma vergonha e agora até danço o step e um homem da minha idade tem mais é de fazer o que lhe der na real gana – e a Rita falando.
A Rita. Ah, a Rita foi outra coisa ainda. Discretíssima, de início. E, de repente, o António lá de trás, tão alto como só os queques e os ex-ministros:
– Então, está cá, ó Joel? E esse livro novo? Já vi, já vi.
E a Rita muito atenta, e o António mais isto e aquilo, e eu que sim e que não, e a Rita somando dois mais dois:
– Me perdoe eu estar me metendo...
E logo embarcando na mais maravilhosa conversa sobre o nascimento de um leitor – de uma leitora, ela própria – na roça de Mato Grosso, onde havia uma velha que lia.
– Tem gente que não gosta de ler e eu fico me perguntando: como é que é possível? Esse ano já li a biografia do Albert Einstein, a do Mahatma Gandhi e a do Bill Gates. A do Bill Gates é o meu livro preferido. Eu estava numa livraria, derrubei ele com o cotovelo e disse: “Esse livro tem alguma coisa para mim.” Já li duas vezes. E também já li do Freud e do Steve Jobs. Gosto muito de ler as histórias dessas pessoas inspiradoras. Comecei lendo romances e depois mudei para biografias. Quando eu me habituei a ler comecei até a me relacionar melhor com as pessoas, a compreendê-las melhor. Me reeenquadrei. E, depois, ficar vendo televisão para quê? Se uma pessoa só vai ficar sabendo o que já sabe, de que serve viver?
E nem sequer foi assim: foi melhor – muito melhor. Infelizmente, não cheguei a conseguir pôr o telemóvel a gravar, porque tinha os dedos na parafina quente e a Rita a olhar. Ainda corri a anotar o que me lembrei, à saída, mas tinha dormido mal.
Que bela personagem é a Rita. Ou o revisor do comboio onde viajo neste preciso momento, e que me salvou a agenda. Que diferente dos autómatos do call center, para que liguei a pedir ajuda assim que me apercebi de que as filas em Campanhã estavam enormes e não me restava senão entrar no comboio sem bilhete. E com que dignidade me tratou (tal qual a senhora da loja das sopas) assim que o encontrei para me explicar. E com que gentileza, depois de eu lhe contar a minha história inteira, a ver se me deixava chegar a Lisboa a horas, mesmo que me multasse – com que gentileza me vendeu o bilhete uma vez e até duas, porque ainda por cima eu queria factura. E com que coração, quando enfim o convenci a deixar-me enviar-lhe uma lembrança, num gesto mínimo de gratidão, foi buscar aquele pin dourado da CP e mo pôs na mão:
– Se me vai enviar uma lembrança, tem de me deixar dar-lhe uma lembrança também. Tome. Este é dos raros.
Que comoventes são estas pessoas. Que comoventes e que encantadoras e que bonitas são as pessoas. E como eu as ignorei durante tantos anos. E como vou guardar agora este pin dourado da CP, que é dos raros e conta sozinho tantas das suas histórias. E como é sempre isso que penso, quando puxo do caderninho e tomo notas sobre elas: teria eu reaprendido a olhá-las sem a ajuda dos meus vizinhos da Terra Chã?


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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