Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Como é, hoje estás da banda?

Lugar dos Dois Caminhos, 1 de Novembro
Às vezes tento imaginar aquela fábrica. Aquelas fábricas todas. Gostava de contar a história daquelas fábricas. Gostava de contar a história daqueles operários e de como olham para os objectos que fabricam.
De como olham para nós.
Ainda há dias um amigo, regressado do Canadá, me trouxe uma garrafinha de xarope de ácer, com o formato de uma folha de ácer também. Ele sabe que há anos guardei os souvenirs numa caixa na garagem, porque preciso de espaço para os livros. Mas não resiste: sempre que viaja para algum país novo, mesmo aqueles onde já estive várias vezes, traz-me um souvenir piroso. A maior parte das vezes viro o objecto ao contrário e lá está a etiqueta: “Made In China.”
Como nesta garrafinha de xarope de ácer.
É claro: há anos que todos nós gozamos com isso do Made In China. A piada do Made In China anda aí, pelo menos, desde os anos oitenta. Deixou até de ser piada: n’O Lago dos Tubarões, já não há emissão em que não venha um magnata estranhar que o empreendedor pretenda fabricar o seu saca-rolhas na Carolina do Norte, se na China é muito mais barato.
E, no entanto, não é a piada que me seduz: é o operário. Como olhará o operário que acorda todos os dias de madrugada, atravessa o inferno dos transportes públicos de Tianjin, trabalha de sol a sol e regressa a casa de noite – como olhará ele para isso que passa o dia a fabricar, garrafinhas de xarope de ácer com  o símbolo do Canadá, bibelôs da Grande Pirâmide de Gizé, galochas pintadas a dizer Welcome To The Netherlands, porta-chaves do Cristo Redentor? O que achará um operário chinês de uma estatueta da ‘Pequena Sereia’ onde tem de colar a inscrição “COPENHAGEN”, e de um candeeiro a óleo com uma imagem grosseira do Mount Rushmore, e de uma havaiana de borracha a tocar um ukelele, e de um capacete viking?
Com que sonhará? Como imaginará o mundo para lá da China? Que género de desejo cultivará? O que pensará dos lugares e das pessoas e dos objectos e das rotinas além das fronteiras (as físicas e até as cibernéticas) impostas pelo Partido?
Isso eu gostava de ver. Essa história eu gostava de contar. Quando penso num documentário que poderia realizar, é quase sempre esse o primeiro que me vem à cabeça: como olha um operário chinês para o galo de Barcelos que passa os dias a fabricar em Tianjin, de onde nunca saiu ou sairá?
Todas as manhãs, quando vou ao supermercado, me cruzo com um casal de chineses, daqueles que Pequim escolheu para fazerem parte da diáspora oficial. Têm uns 55-60 anos, talvez, e todos os dias vão lá também. Vêm a pé pela rua, passeando. Cirandam entre as prateleiras e os cestos, a conversar sobre a fruta. Sentam-se a comer croissants.
Não sei o que fazem – imagino que sejam comerciantes –, mas são felizes. E o que todos os dias me pergunto, ao assistir aos seus gestos lentos e à sua tão evidente felicidade, nunca é se estão felizes porque vieram dar a um pequeno paraíso, tão diferente do sufoco de poluição e stress de Tianjin: é que souvenir estrambólico de que país que nunca conheceriam estão tão aliviados por não terem de passar o dia a fazer.
Desconfio do galo de Barcelos. Um homem podia enlouquecer ao fim de uma vida a fabricar galos de Barcelos.

Lugar dos Dois Caminhos, 2 de Novembro
E, todavia, há stress nestas ilhas, como o há na província. Era o que faltava não haver stress. Que género de vida poderia ser essa em que não há stress?
Eu tenho stress na Terceira. Teria stress até num mosteiro do Nepal. O stress pode ser uma doença, mas também pode ser apenas um sintoma. E é um instrumento.
Este Verão cheguei a ultrapassar os limites. Marquei uma consulta com uma fisioterapeuta, por causa de uma microrrotura que fiz a jogar ténis, e à última hora ela mandou-me uma mensagem a mudar o dia – tive de respirar fundo para controlar o stress. Mandei o carro à revisão, fiz o motorista da oficina prometer-me que mo devolvia antes das 18.00, por via de um compromisso, e às 18.30 nada de carro – enervei-me de tal maneira que no dia a seguir tive de enviar um e-mail ao homem a pedir desculpa. Deixei umas impressões a fazer numa loja de fotocópias, perguntei quando estariam prontas, dei o número de telefone para que me ligassem em caso de atraso e, ao final do dia combinado, nem as impressões estavam prontas, nem me tinham ligado – exaltei-me como poucas vezes nos últimos anos, e continuo tão envergonhado que ainda não voltei lá a pedir desculpa.
Mas, caramba: a rapariga nem chegou a perceber que não podia ser ela a decidir sobre aquelas duas horas da minha vida. Achou que eu era simplesmente parvo. Como é que eu não haveria de exaltar-me?
A questão é que não vim para o campo para desperdiçar o meu tempo: vim para usá-lo melhor. Quando digo que saber perder tempo é uma das grandes aprendizagens da vida, não falo de desperdiçar tempo a andar para trás e para a frente à espera de umas impressões. Falo de uma perda de tempo edificante. Falo de ganhar tempo, no fundo.
Portanto, tirem-me tudo, mas não tempo. Peçam-me dinheiro, que se eu tiver empresto: tempo, não peçam. Preciso do meu tempo. Isso é stress. Mas, no campo, é possível não perder tempo com inutilidades, ao contrário do que acontece nas cidades – o stress tem saída.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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