Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Não é preciso encheres esse prato a fazer cagulo

Lugar dos Dois Caminhos, 27 de Outubro
Assentadas as primeiras poeiras em torno do infame acórdão em que se manifestava compreensão pela violência doméstica perpetrada após um adultério, aceleram os jovens intelectuais lusos em busca da perspectiva ainda não lançada sobre o problema. Em abstracto, o método tem os seus méritos. Mas o desejo nem sempre é amigo da inteligência. A obsessão, em casos assim, é por deixar claro que mais ninguém chegou à verdade. É pela validação do coloquiante, não da ideia. E, inevitavelmente, acabamos por cruzar-nos com variações da frase: “Estamos nós aqui a discutir o juiz, mas o país real concorda com ele...”
O dito acórdão é impensável, na forma como no conteúdo. Mas o recurso ao estafado “país real” não merece mais apreço. Sempre que alguém usa a expressão “país real” está a partir do princípio de que a realidade global portuguesa é outra que não a de Lisboa; de que a realidade global portuguesa é pior do que a de Lisboa; e de que essa realidade está na província. A condescendência tem o seu quê de perturbador porque ignora a possibilidade de a província, uma vez por outra, ser menos tonta do que a cidade. Mas sobretudo porque, em regra, o autor das palavras “país real” não conhece o país.
Já tive essa visão sobre a província. Fui um lisboeta igual aos outros. Viver na província ajudou-me a perceber que, tal como não se pode dizer que Lisboa pensa assim, também não se pode dizer que a província pensa assado. A generalização não é só grosseira: está errada. Grande parte das pessoas da província está disponível para ceder nos seus atavismos se nós estivermos disponíveis para perceber de onde eles vêm. Há gente de bom coração na província, não apenas camponeses rudes e idiotas. E só não o percebe quem não consegue libertar-se desse que é o calcanhar de Aquiles da cidade: a urgência de ter razão.
Ter razão não constitui um bem absoluto. Menos razão e mais perplexidade: eis o que a província me ensinou a procurar. Um certo espaço para o espanto. Um pouco de humildade, se possível. E liberdade: a suprema liberdade de dispensar a admiração do outro a todo o instante.

Lugar dos Dois Caminhos, 28 de Outubro
Agora que olho para trás, acho que tivemos acima de tudo uma preocupação: não nos tornarmos iguais àquele casal. Nesse sentido, foi uma fortuna bem gasta, os não sei quantos mil euros que pagámos. Choro-os hoje menos do que na altura.
Isto foi no último ano completo que vivemos em Lisboa. Não tínhamos tido férias, como de costume, e eu estava há não sei quantos dias ausente, em trabalho. Até que, num arroubo de saudades e cansaço, foi cada um ao seu computador, à procura de uma quinta. Um de nós encontrou aquela, e agora seria fácil eu dizer que foi a Catarina.
Nós éramos razoáveis frequentadores de unidades de turismo rural, embora por pequenos períodos. Umas eram caras, mas as pessoas encantadoras. Outras desconfortáveis, mas os preços vantajosos. A maior parte tinha o seu quê de moralismo, algumas nem isso. Uma delas não tinha e tornamo-nos habitués.
Fomos lá casar, ao fim de algum tempo. Contratámos os Dixiegang e as tias rasgaram os saltos a dançar na gravilha.
Já a quinta que escolhemos naquele ano de cansaço e improviso não era apenas cara. Era desconfortável. Os anfitriões teriam imensas virtudes, mas nenhuma era serem encantadoras. E, principalmente, o moralismo em vigor atingia níveis com que nunca tínhamos tido o privilégio de contactar.
Lembro-me de ir a entrar na piscina biológica, com todo o cuidado para não pisar os nenúfares, e de a dona vir lá de dentro disparada para me ordenar que tomasse um duche prévio, de modo a não contaminar o ecossistema. Achei bem, porque eu também não quereria pertencer a um ecossistema que me aceitasse sem tomar um duche. Mas tudo o mais, ao longo da semana, foi assim.
Não, não, internet não, que aquele era um lugar de silêncio. Não quereríamos nós passar na biblioteca da sala a apanhar um filme, para não termos de assistir aos que trouxéramos, com certeza por distracção? E, agora que nos preparávamos para tomar um pequeno-almoço em silêncio, que tal recebermos na nossa mesa a anfitriã, para ouvirmos a venturosa história da sua vida?
Sei lá: é difícil de descrever. Nós sabemos quando todos os nossos passos são escrutinados de modo a construir uma estrutura de parlamentação que nos deixe saber aquilo que ainda ninguém teve a coragem de nos dizer: que somos umas bestas. E também sabemos quando o bem-aventurado casal à frente de nós debate interiormente a utilidade do esforço de salvar-nos, até que, vencido pela compaixão, aceita dar-nos uma oportunidade.
E foi isso que nós não quisemos tornar-nos – eis quanto eu pretendia dizer. Viver no campo, para nós, foi desde o princípio um milagre em si mesmo. Não precisava de ser confirmado por outro milagre. Estaríamos atentos à diferença, à autenticidade e também à rudeza. Saberíamos distinguir a bondade de um camponês da crueldade do seguinte. Tentaríamos não nos deixar arrastar para uma ausência de urbanidade que nos tolhesse os sensores da incultura. E esforçar-nos-íamos por não ser moralistas.
O moralismo. Ando em guerra com o moralismo. É impressão minha, ou quase tudo o que se diz em público, hoje, é moralismo e autolegitimação?



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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