Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Não é macânico, faz uns fanecos

Terra Chã, 22 de Junho
Aqui há umas semanas, fui ao Fundão. Nunca tinha ido ao Fundão, apesar de a Beira Baixa ter chegado a constituir destino regular na minha rotina, e ia radiante. Se alguma coisa perdi, com a mudança para a ilha, não foi a presença em Lisboa: foram os desvios à província. De Lisboa, conservo o melhor. Do Alentejo no Inverno, do Minho em mês de lampreia, do Porto a altas horas da noite – disso é que deixei de ter que chegue. Lisboa suga-me cada minuto em viagem.
De maneira que, convidado a visitar o Fundão, apanhei o Sata, almocei com os sogros e, à hora combinada, lá estava em frente ao Galeto, à espera do autocarro da Câmara. Tive logo uma visão do passado: o autocarro perdeu-se no trânsito, os motoristas meteram os pés pelas mãos e acabámos todos por arrancar com duas horas de atraso. Mas, à chegada, tínhamos à espera um jantar ao ar livre, num jardim pelo qual se espraiavam, pachorrentos, escritores, músicos e pintores. Achei logo que ia ser uma boa jornada.
E foi. Durante dois dias, cirandámos pela região, procurando os recortes das serras no horizonte, experimentando restaurantes, comendo cerejas. Contactámos com a formidável memória da resistência ao salazarismo. Fizemos debates, demos entrevistas, ouvimos a Cristina Branco cantar Chico Buarque e, quando nos viemos embora, não houve um só que não repetisse a piada de Eric Nepomuceno, de que o Festival Literário da Gardunha, nosso anfitrião, fizera atracção internacional:
– Gostei tanto que, inclusive, já aceitei o convite que ainda nem me fizeram para voltar no próximo ano.
Mesmo assim, a primeira coisa de que me lembro desses dias é aquela intervenção de um jovem poeta moçambicano:
– Qual é a palavra? – E coçou a cabeça: – Bom, anyway...
Foi a meio de um debate entre autores dos chamados PALOP, a propósito dos seus padecimentos criativos e, em geral, dos temas da viagem e da fronteira na literatura. Pois ali estava um desses artistas aos quais não podemos deixar de confiar a promoção da língua portuguesa em África. E, porém, no momento em que lhe faltou uma palavra, não só não a encontrou, mas desconversou em inglês. O que se tornou ainda mais sintomático por acontecer com um poeta de Moçambique, o país onde os riscos de assalto por uma língua externa – o inglês da África do Sul – estão mais comprovados.
É que podia muito bem ter sido eu a dizê-lo, note-se. Se não:
– Qual é a palavra? Bom, anyway...
Então outra tolice qualquer. Ora, essa consciência, essa descoberta, é talvez a que mais urge ter e fazer, hoje, não só entre escritores e autores, a suposta tropa de elite de uma língua, mas entre professores, alunos, pais e cidadãos em geral. E adquiri-la num festival literário subordinado aos temas da viagem e da fronteira teve o seu significativo.
Agora parecem-me uma dicotomia, a viagem e a fronteira, e o que as distingue é o tipo de destino em causa. Na grande literatura de viagem, em boa parte europeia, está sobretudo em jogo o destino individual. Dele se alimenta a jornada do herói: de uma fuga, frequentemente de um recomeço – de uma ruptura e de uma página em branco. Já na literatura de fronteira, de que será expoente ocidental a norte-americana, joga-se principalmente o destino colectivo. É de protecção contra a ameaça exterior que se fala, mesmo quando se fala de conquista de território. E a peregrinação é ao passado. Para dentro, não para fora. Em oposição ao outro, em vez de em direcção a ele – uma peregrinação fundada sobre a impossibilidade de voltar, de que não se volta igual ou sequer diferente.
Uma peregrinação política.
Ali, naquele pequeno auditório de um lugar onde se resistiu, percebi que à língua portuguesa não resta outra coisa senão voltar a constituir-se como uma língua de fronteira. Como uma língua política: uma língua que desbrava e protege o caminho desbravado, que monta trincheiras e se defende em relação a outra.
Em relação ao inglês, naturalmente.
Na verdade, de cada vez que um de nós se permite dizer:
– Qual é a palavra? Bom, anyway...
Traz consigo mais lastro do que pensa. O da implacável ditadura que a língua inglesa exerce em todos os domínios da cultura popular. Toda uma geração para a qual ler no original (sic) se tornou derradeiro mecanismo de distinção. Um tempo em que dois terços da comunicação se faz na Internet e, nesta, três quartos em inglês. Um tal desmoronamento das restantes línguas que até o Festival da Eurovisão, dantes um desfile da diversidade europeia, já é quase todo cantado em inglês.
E eu creio que o único modo de preservar não apenas esta língua, mas esta identidade, este modo de vida e este olhar sobre o mundo, é o chauvinismo. Se o raciocínio se faz em palavras, então falar como os outros será pensar como os outros também. Falar orgulhosamente mal inglês, à maneira de Eça – eis o desafio. Na fala e na escrita: reduzir os estrangeirismos rigorosamente aos momentos em que de facto acrescentem conteúdo, e não só personagem. E, sobretudo, ter consciência disto: até os cãezinhos da rua já falam inglês. Simplório é julgar que falar bem inglês nos distingue sequer dos cãezinhos da rua.
Não resta espaço para milagres: a língua portuguesa vai, em todo o caso, diluir-se até desaparecer. Mas talvez consigamos adiá-lo por mais uma geração ou duas.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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