O grande 31 de Miguel e António chegou ao fim

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Chegou ao fim o grande 31 de Miguel e António

Quando António Zambujo e Miguel Araújo deram o primeiro concerto, nunca imaginaram que a tour ia ser a maior do ano em Portugal. Este fim de semana tocam em Beja. Estivemos nos bastidores.

As garrafas de vidro, penduradas nos escadotes de madeira, iam refletindo a luz — primeiro azul, depois verde. Em cima do palco, a equipa técnica andava numa correria desenfreada, afinando guitarras, ligando cabos e colando pedaços de fita-cola preta em tudo o que era lado — construindo um mapa que apenas eles conseguiam compreender.

Faltavam menos de sete horas para o concerto de Miguel Araújo e António Zambujo em Beja, o 29º de uma série de 31 que arrancou a 17 de fevereiro no Coliseu de Lisboa. Uma “loucura” — como eles próprios lhe chamaram — que esgotou salas por todo o país. As estimativas da organização apontam para uns impressionantes 84 mil bilhetes vendidos. Foi provavelmente uma das maiores e mais bem sucedidas digressões portuguesas de sempre.

 O palco do Pax Julia, o teatro municipal de Beja, é bem mais pequeno do que o do Coliseu de Lisboa, onde tudo começou há oito meses, mas isso não quer dizer que seja mais simple de montar. Os trabalhos começaram um dia antes, na quarta-feira, a contrarrelógio. Era preciso que tudo estivesse a postos quando Miguel e António pisassem o palco para o soundcheck de quinta-feira à tarde. O concerto, o primeiro dos últimos três, realizados na cidade natal de Zambujo, estava marcado para as 21h30.

 — A que horas é que eles chegam?

_ Eu disse-lhes para estarem cá às 15h, portanto devem chegar às 16h — respondeu Francisco Carvalho, o Xico como é conhecido entre a equipa, tour manager de Miguel Araújo.

Nos bastidores, Tiago Cação, que habitualmente desempenhas as mesmas funções nos concertos a solo de António Zambujo, ouvia Tasmin Archer sentado ao computador, e a música chegava ao palco onde Xico tocava uma sonata de Beethoven para testar o piano de cauda. “Queres ver a guitarra do Zamba?”, perguntava um dos técnicos a Bruno Pereira, responsável pelo som, sentado atrás da mesa de mistura a vários metros de distância. “Ou queres antes a do Miguel?”. As máquinas de fumo iam trabalhando, com um zzzzzzzzzz a marcar o ritmo, enquanto as luzes iam piscando. Estava tudo a postos.


Miguel Araújo chegou às 16h30, de trolley cinzento na mão. Deixou-o a um canto e sentou-se logo ao piano, onde ficou durante uma hora a tocar e a tocar. António Zambujo chegou depois. De sorriso nos lábios, distribuiu abraços e cumprimentou o parceiro de palco, que nem tirou as mãos do piano.

 — Ó Pereira, ainda estás a fazer alguma coisa?

 — Entretanto já parei — gritou-lhe Bruno Pereira do fundo da sala.

Miguel percebeu que estava na hora de se levantar e trocar o teclado do piano pelas cordas de uma guitarra. A passo lento, encaminhou-se para o escadote de madeira que lhe ia servir de banco durante todo o concerto. Pegou na primeira guitarra, depois noutra e noutra. Eram quatro ao todo, e todas precisavam de ser testadas. António apareceu depois. Vindo do backstage, pegou na guitarra e sentou-se ao lado do amigo, no outro escadote.

Conclusão: fazer o som de Miguel Araújo não é pera doce. Além das guitarras e do piano, há ainda um contrabaixo e um cavaquinho. São diferentes instrumentos que o músico da Maia vai alternando durante os concertos. “Ó Pereira, ainda vais precisar aí de uma meia hora com o Miguel, não vais?” O Pereira disse que sim, e António regressou satisfeito à mesma cadeira do backstage. Haveria de voltar, meia hora depois.


Pereira, pausa para um cigarrinho?”, brincou Miguel. “Deixou de fumar há quatro dias” explicou, virando-se para António. “Quem? O Pereira?”, questionou o alentejano olhando em frente, tentando ver a cara do técnico de som no escuro. “Pereira, nós aqui estamos muito felizes. E tu? Estás ansioso? Vai a onde o coração te leva!”. A esta frase juntou um coração feito com as mãos para que todos percebessem como a dedicatória era sincera.

Tocadas duas ou três músicas, encenou-se a entrada em palcos — tal como ia ser às 21h30. “Fazemos a coisa toda? Incluindo a guitarra do início?”, perguntou Miguel. “Era fixe”, disse-lhe o Pereira. “Apaguem as luzes da sala. Apaguem tudo!”, pediu o amigo. E assim foi. Pela primeira vez, Beja ouviu António Zambujo a cantar “Foi Deus”.

 Uma digressão fora de órbita

Terminado o soundcheck, era tempo de descansar. Miguel sentou-se num banco a limar as unhas, de frente para uma mesa recheada de chocolates, comida e bebida. António andava para trás e para a frente, conversando com este e com aquele. Faltavam cerca de duas horas para o início do concerto e a equipa falava no que realmente importava: o jantar. Depois de várias horas de trabalho, era mais do que merecido.

A ideia de dar uns concertos em Beja, terra natal de António Zambujo, não é coisa recente, mas só surgiu depois das 11 datas originais nos coliseus, das mais seis que lhes foram adicionadas e das 11 que lhes seguiram. Foi “uma coisa mais a meio do percurso”, como admitiu António ao Observador, sentado numa cadeira no backstage. “Falei aqui com o pessoal e eles deram-nos todo o apoio. Achámos que era uma boa ideia” e a maneira ideal de terminar um percurso que começou como uma brincadeira e que terminou num dos maiores eventos de música de que há memória. Os números não enganam.

Á semelhança de outros concertos, os bilhetes para as duas datas, 29 e 30 de outubro, em Beja também esgotaram. “Foram postos à venda às duas da tarde e, às três e um quarto, já estavam as duas noites esgotadas.” A rapidez com que os bilhetes voaram fez com que fosse acrescentada uma terceira data — quinta-feira, 28 de outubro. “Esgotou em 45 minutos!” Um fenómeno que nenhum dos dois amigos consegue compreender. É que quando se lançaram nesta aventura, que não é muito diferente dos muitos serões acompanhados à guitarra em casa de amigos, nunca imaginaram que oito meses depois e 84 mil bilhetes mais tarde ainda estariam na estrada. Para eles, não passava de um pequeno concerto “intimista” que talvez nem tivesse capacidade de encher um coliseu.

É engraçado. Quando eram 17, ele contava a história do concerto do Eric Clapton no Royal Albert Hall. Ele juntava a malta e todos os anos fazia um concerto. Depois houve um ano em que ele fez 24”, contou António Zambujo. “E ele [Miguel] dizia: ‘Mas aos 24 a gente já não consegue chegar!’. E, de repente, pumba! Vinte e oito e agora mais três — 31.” Pumba e muita “estupefação”, como Miguel Araújo fez questão de salientar. “Nem nós nem ninguém [imaginou que fosse possível]. Mas antes nós do que outros!”, disse ao Observador entre risos.

Mais de duas dezenas de espetáculos depois, Miguel admite que “a ficha ainda não caiu”. É tudo demasiado inacreditável, “impensável” até. “Só me vai cair passado muito tempo. Segundo a Time Out, é o evento de música popular portuguesa que atraiu mais pessoas. Porque são mais pessoas do que as que cabem num estádio.” Uma proeza que poucas bandas ou artistas em Portugal se podem gabar de ter conseguido.

Quando se fala na história da música pop portuguesa, está-se a falar da Amália, dos Xutos, Tony de Matos, Rui Veloso, Tony Carreira — está-se a falar de coisas avassaladoras. Não foi pensado nesses termos. Quando dizemos nas entrevistas que hesitámos em fazer o Coliseu porque era demasiado grande e se calhar não enchia, é verdade. Falou-se muito nisso.

Grande e talvez desadequado. A ideia inicial era fazer uma série de concertos intimistas — dois amigos e as guitarras, só isso. “O formato que nós tínhamos imaginado — que é isto, os concertos que muita gente já viu –, é assim os dois com as guitarras. Apesar de ele ter mais guitarras, só toca com uma da cada vez”, brincou António.

É por tudo isto que a correria aos bilhetes é ainda mais inexplicável. “Podia ter sido uma coisa espetacular e depois houve o passa-palavra, mas não foi esse o caso. Antes de haver o primeiro concerto, já estavam tantos esgotados… Foi passar um cheque em branco. As pessoas não sabiam o que é que ia ser. Nós não tínhamos anunciado que éramos só os dois, podia ser uma banda. Podia ser isto, podia ser aquilo — não dissemos o que ia ser e as pessoas por alguma razão foram feitas loucas aos bilhetes”, referiu Miguel. “Se calhar agora pergunta-se às pessoas e não foi nada de especial.


António não parece concordar. Apesar de não ter Facebook, sabe que os comentários nas redes têm sido positivos. “Às vezes vou ver os comentários das pessoas e há sempre gente a dizer ‘o melhor concerto que vi na vida’. Não vi ninguém a dizer ‘que bosta!’”. Mas encontrar uma justificação para tantos elogios não é tarefa fácil, apesar de uma coisa ser óbvia: “A das pessoas gostarem de nós”.

Mas não gostam ao ponto de serem 28 concertos”, admitiu por sua vez Miguel. “Gostam de ti ao ponto de serem dois coliseuzitos, gostam de mim ao ponto de ser um. Por exemplo, uma coisa que obviamente atrai as pessoas é serem dois artistas que não se encontram todos os dias. A ver, é ver agora. Nós estamos sempre a dar concertos isoladamente, mas a junção ou era ali ou não era. Isso pode explicar que esgote um coliseu, mas não explica as 28 datas. Isso não explica. Explica duas ou três ou quatro”, afirmou. Indeciso, acabou simplesmente por dizer: “É preciso perguntar às 84 mil pessoas para saber o que lhes passou pela cabeça.

Mas nem todos são fãs incondicionais. Há um utilizador do Facebook que faz sempre questão de dizer quão maus eles são. “Está lá sempre a dizer mal. ‘Que merda é esta? Esta música nem para dormir serve!’”, contou António. “Sempre que ele intervém, partilhamos no nosso grupo, que não somos só nós — é o pessoal todo daqui. Já não me lembro do nome dele. Ele usa um nome tipo Jupiter21, sei lá”, acrescentou Miguel. “É um rapaz com tomates”, atirou António.

 Um regresso a casa

Feito o soundcheck, a equipa reuniu-se à porta do Pax Julia para seguir para o jantar. Pelo caminho em direção ao restaurante, mais um cigarro e outra história. Ali antes era uma ourivesaria, ali era um bar do outro senhor. Histórias de outra época — de uma outra Beja — que António conheceu enquanto ali cresceu.

O jantar fez-se com alguma pressa, porque a hora do concerto estava cada vez mais próxima. A maioria pediu bifes de vitela, mergulhados em molho de manteiga, e acompanhados com batatas fritas. Falou-se muito, abriram-se umas quantas garrafas de vinho e, no final, fez-se o caminho inverso de volta ao teatro municipal. A entrada, por favor, é pela porta das traseiras. À frente, iam-se reunindo as primeiras pessoas. A data estava esgotada e esperava-se casa cheia.

Antes do concerto, Miguel e António sentam-se no camarim. O manager de Miguel, Pedro Barbosa, estava lá. Chegou durante o jantar e ficou a conversar com os dois músicos nos minutos que precederam a entrada em palco. Miguel andava atarefado com um chá de gengibre para aquecer a voz, que até lhe valeu um pequeno corte no dedo. “Cortaste-te?”, perguntou-lhe António, sentado num cadeirão. “Sim, mas não é nada.” O chá foi distribuído pelos dois, e Miguel ia dando pequenos golos enquanto dava uns acordes na guitarra.

A equipa de produção andava de um lado para outro a preparar tudo para o espetáculo que estava prestes a começar. Na sala, longe da confusão dos bastidores, a plateia ia começando a encher. “Mais vale começar um bocadinho mais tarde do que as pessoas estarem a entrar quando o concerto já começou”, ouvia-se alguém a dizer para um walkie-talkie. Por isso, quando os dois amigos atravessaram o corredor backstage para entrar no palco, já passava da hora combinada.

Iam com medo do público de Beja, que consegue ser o mais frio de todos. Mas a receção foi calorosa. As palmas e as ovações seguiram-se umas atrás das outras e, como prenda, os dois músicos presentearam os bejenses com dois encores.

Olhando para trás, pouco parece ter mudado desde aquele primeiro concerto a 17 de fevereiro em Lisboa. Os dois estão mais coordenados, é certo, e foram feitos ajustes a algumas das músicas, como “Tu Gostavas de Mim”, a canção que Miguel escreveu para Ana Moura “apesar de não perceber nada de fado”. Em Beja, foi cantada ao som de um cavaquinho. Em Lisboa, com duas guitarras. A única grande diferença foi mesmo a conversa — na capital, as músicas misturavam-se com a conversa entre os dois, que pareciam estar em casa de amigos entre copos e guitarradas. Em Beja, houve mais silêncio.

Quase três horas e dois encores depois, Miguel e António regressaram definitivamente ao backstage. À sua espera tinham duas minis e uma equipa pronta a recebê-los. “Correu bem.” Sim, correu. Abriram-se garrafas, houve elogios. Estavam todos satisfeitos por mais uma loucura que tinha dado certo. Quase a última. E até haver, depois de Beja, não haverá mais. Ou não será bem assim?

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