As
línguas nacionais são sempre ricas de expressões criativas, engenhosas e de
compreensão instantânea, apesar de elaboradas. Algumas têm tanto engenho que as
saboreamos como frutas. Outras, no entanto, só são entendidas porque nos
acostumamos com elas, nos habituamos a usá-las. Entendemos seu recado, embora o
conjunto das palavras em si não faça sentido; não atinamos com sua lógica, ou a
perdemos ao longo dos séculos; guardamos seu significado, não sua
explicação.
Dou
um exemplo, para ficar mais claro: “rasgar seda” significa fazer uma gentileza,
tecer elogios, trocar amabilidades. Como assim, “rasga rseda”? Por que isso
significaria troca de gentilezas, desfazer-se em amabilidades? Pode se fantasiar
que alguém, em tempos remotos, ao tentar ajudar outra pessoa, se esforçou tanto
que rasgou sua camisa de seda, rasgou seda. Mera hipótese humorística,
lereia.
Quando
um jogador de futebol joga demais se diz: “comeu a bola”. Como assim, “comeu”?
Neymar comeu a bola. A expressão não é tão velha, mas sua lógica já nos escapa.
Comeu, engoliu, não deixou para mais ninguém — seria isso? De novo
hipóteses...
Quem
está com gosto ruim na boca, aquela lembrança matinal de bebida ruim e cigarro,
costuma dizer que amanheceu “com gosto de cabo de guarda-chuva na boca”. Quem
provou cabo de guarda-chuva para saber? Já ouvi isso de tanta gente... —
significaria que essa degustação é experiência comum?
Vejam
bem: não falo de ditados, mas de forças de expressão do dia a dia. A maioria tem
sua lógica, como “macacos me mordam”; a lógica é que dói muito, e clama-se como
autopunição condicional, “macacos me mordam se eu aceitar uma coisa dessas”. Tem
lógica dizer “saiu catando cavacos” quando uma pessoa sai aos trambolhões. Tem
lógica dizer que “a vaca foi para o brejo” quando alguma coisa dá errado, porque
vaca no brejo se atola e não sai mais, morre lá. Igualmente têm lógica as
expressões “enfiou o pé na jaca”, “sentou na maionese”, “urinou fora do penico”,
“caiu do cavalo”, “abraço de tamanduá”, “espírito de porco”, “cabeça de vento”
etc.
O
curioso é que se continua a usar quando não se sabe mais explicar. Coisas
simples e corriqueiras. Por exemplo: “quebrar o galho”, “me quebra esse galho”,
“vou quebrar o seu galho”. Como assim? Para que serviu na primeira vez? Que se
quis dizer com isso? De novo uma hipótese de humor: no tempo dos bandeirantes,
facões nas mãos desbastando os matos, um quebra o galho para o outro, e vão
quebrando galhos...
“Vias
de fato”. Sabe-se que são sopapos, qualquer um diz “foram às vias de fato”, mas
qual é a lógica dessas palavras? Não é o mesmo caso de “via de regra”, porque aí
se sabe que é uma redução de “por via de regra”, segundo o costume.
Muita
gente diz para outra pessoa: “Você é de morte”. Sabe-se o que é, mas tem lógica?
Tinha até marchinha de Carnaval: “Ela é de morte”... “Pintar os canecos”.
“Pintar o sete”. Quem desfaz esse mistério? Diz-se de uma pessoa muito
bagunceira, muito travessa: “Ela pintou o sete” — mas por quê?
Há
algumas muito antigas, que já ninguém usa, mas se encontram a toda hora em
livros que os jovens leem para o vestibular. “Deu às de Vila Diogo” é uma delas.
Sabe-se que significa deu no pé, fugiu, mas como se explica? Nem a sintaxe se
entende. Quem era o Neves que morreu na expressão “até aí morreu o Neves”? É
como quem morre na fila do SUS, esperando.
Reparem
nesta: “negou de pés juntos”, ou “de pé junto”, como o povo diz. É diferente de
negar de pés separados?
Quando
Fernando Gabeira foi preso, baleado em São Paulo por agentes do regime militar,
seu velho pai comentou na venda que tocava em Juiz de Fora, Minas Gerais:
“Meteu-se em camisa de onze varas”. A filha Marisa, que lhe deu a notícia,
entendeu, e entende-se: meteu-se numa confusão que não tem saída, está ferrado.
De onde veio a expressão? Suponho que era camisa de amarrar doido, entremeada de
varas para reforço, mas será? Pesquiso e leio que as camisas usadas nos
hospitais (“a alva dos padecentes”) eram feitas com 11 varasde pano. Será? Vou
atrás: 1 vara media 1,10 metro. Como fazer uma camisa de 12 metros de tecido?
Lereia.
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