A língua é uma arma carregada

DO TEXTO: A linguagem como "ferramenta" ou instrumento de agressão contribui para humilhar e magoar.
Cano de arma



Usado para mostrar a inferioridade alheia, idioma pode se tornar um perigo nas mãos de letrados ignorantes


Por: John Robert Schmitz*

Quem nasce "dentro" de um dado idioma - isto é, quem adquire uma língua no berço e na presença de parentes e depois aprende as primeiras letras na escola - não passa pelo mesmo processo vivenciado por quem começa a estudar línguas depois da puberdade. Norte-americano, cursei a língua espanhola na adolescência e, já na vida de adulto, iniciei o estudo formal do português.

Lembro-me de que, nas aulas de português nos EUA, aprendi a falar "Maria, eu a conheço" e "Pedro? Não o vi hoje". No Brasil, ouvi outro uso: "Não conheço ela" e "Não vi ele hoje". No início, usei a forma aprendida na escola até ter mais dados a respeito dos usos dos pronomes. Adquirir uma língua estrangeira é um desafio.

Os brasileiros são pacientes e benevolentes com a produção oral e escrita de estrangeiros que vivem no Brasil. Nem sempre há a mesma paciência entre brasileiros. Alguns, nem todos, tendem a debochar dos cidadãos que dizem "seje" ou "nóis vai" e assim demonstram preconceito contra os que foram obrigados a trabalhar desde cedo na vida sem poder ter acesso à escola e aos livros.

Há indivíduos que se deleitam em ridicularizar as pessoas que erram na grafia ("excessão" em vez de "exceção") ou pronúncia ("probrema" em lugar de "problema"). Não soletrar corretamente certas palavras é mais questão de falta de atenção (e leitura, sem dúvida!), nada tem a ver com a inteligência. Fazer uso de agressões verbais como "burro" ou "analfabeto" mostra como a linguagem chega a funcionar como "arma carregada", para lembrar a metáfora apresentada pelo linguista Dwight Bolinger (Language: The Loaded Weapon. London: Longman, 1980).
 
A linguagem como "ferramenta" ou instrumento de agressão contribui para humilhar e magoar. Como diz Betty Milan, a palavra deve ser usada "como um fio que conecta ao uso, e não como uma espada que separa e mata." ("O poder da palavra", Veja, 3 de julho, 2009).

A situação é bem diferente no caso de pessoas com formação acadêmica que escorregam no idioma. Não se trata de preconceito, mas de pura impaciência com respeito ao descuido e com respeito à escrita formal e à fala em público.

Escola

Sem dúvida, a falta de escola é um indicador concreto da existência de desigualdade social. O papel da escola é conscientizar as crianças, os jovens e os adultos a respeito da linguagem, apresentando opções linguísticas para que elas cheguem a ser "bi-dialetais", para usar as palavras de Evanildo Bechara (Ensino da Gramática: Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 1985).

Apesar dos esforços dos gramáticos de recomendar o não-uso de certas estruturas gramaticais, elas continuam presentes na fala (e escrita). Todos estamos até cansados de observar os mesmos problemas que foram alvos de crítica bem antes da década dos anos 30 do século passado:

"*Fazem dois anos que moro neste bairro",
"*Houveram muitas brigas na rua",
"*Afia-se facas".

Há usuários que insistem em não querer usar as formas prescritas pela gramática. Outros se acomodam na sua maneira de falar e alguns até sabem o que devem dizer, mas preferem falar como seus vizinhos, amigos e colegas para não correr o risco de cair no ostracismo por falar "diferente". O uso da linguagem é uma prática sociocultural e portadora das identidades dos diferentes grupos que a utilizam na interação cotidiana. Seria quimérico pensar que algum dia todos os cidadãos vão falar sem variação regional ou social.

Preparado

A linguagem humana não é um palco tranquilo. Um político conhecido disse recentemente "melhor preparado" em vez de "mais bem preparado", causando protestos. Mesmo as pessoas que se esforçam para dizer "interveio" e não "interviu" nem sempre são deixadas em paz. Há alguns caçadores de "deslizes" que escarafuncham textos de autores célebres para detectar o que julgam ser ameaças à sobrevivência do idioma. A verdade é que o idioma sempre sobrevive, mas os usuários vão e vêm. Corrigir o outro é delicado e exige diplomacia.

A importância dada à língua escrita em detrimento da oral gera insegurança, tensão e frustração em muitas pessoas. Considerar "erradas" fórmulas como "com certeza", "pra chuchu", "tipo 15 horas", "se liga", usadas em contextos descontraídos, sugere que a linguagem informal oral seja o "primo pobre" do idioma e a língua escrita formal seja o "verdadeiro" português.

A língua falada e a escrita têm gramáticas e normas distintas. Quando for questão de atividades "públicas", apresentadas oralmente com base num texto escrito, a expectativa é que os oradores se expressem no registro formal desprovido de marcas da oralidade espontânea.

Sem vale-tudo

Não estou apregoando um vale-tudo na linguagem. O português ouvido numa balada sábado à noite é diferente do escrito num parecer técnico. Marcas de oralidade num contrato de compra e venda, em primeiro lugar, desviam a atenção do leitor ao conteúdo e podem prejudicar o negócio. Não há uma única norma, mas várias, que dependem do tipo de texto e da situação social em que o usuário se encontra.

A linguagem é perigosa também porque alguns usuários a usam para ofender, contar piadas destrutivas, disseminar boatos e levar vantagem. Páginas de internet que têm por título "Odeio o gerúndio" podem ser galhofa, mas há em tais cenários a possibilidade de transferência do "ódio" para outras pessoais. É irônico que a linguagem que nos torna "humanos" chegue a exaltar os ânimos em alguns casos.

Os estudiosos da linguagem devem continuar conscientizando a sociedade. Mas sem leis contra todo tipo de intolerância, o trabalho será em vão. Seria feliz também se os gramáticos e os linguistas pudessem dialogar mais, dando exemplo para tornar o idioma um cenário de respeito, de cidadania e de paz.

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*John Robert Schmitz é professor do departamento de linguística aplicada da Unicamp

In http://revistalingua.uol.com.br/
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