DO TEXTO:
Fresca como uma alface vinda de Badajoz a horas mortas, a Esperança, a Dona Esperança é a madrinha da minha conversada actual...
Por: Antunes Ferreira
Bocejei, acabadinho de abrir os olhos. Um pigarro soturno tentou limpar algo se me agarrara ao céu-da-boca. Estes despertares matutinos dão cabo do juízo de um sujeito por mais saudável que seja. E no que diz respeito ao hálito – são péssimos. Nem é preciso que nos saiba a papel de música, ainda que não nos tenhamos enfrascado na madrugada anterior. E saltou-me das meninges o verso ladino. «A noite inteira sonhei; com a minha prima Teresa; de manhã, quando acordei; ainda tinha a… vela acesa.»
Sou polícia, com farda, cassetete, óquitóqui, pistola e emblema com brasão da corporação, e tudo. Sou natural de Cebolais de Cima, chamo-me Amável Pintado Matos, tipo vulgar, não muito condicente com o nome, que isto de andar na rua a fazer rondas já deu o que tinha a dar. Mesmo de automóvel, nos antigos cremes nívea, não é muito agradável. Como horizonte, vejo-me chefe de esquadra, quiçá subintendente.
A Esperança nunca mais morre, dizem até que é a última a bater a bota. Alto lá, estou a referir-me à dona do Minimercado Souselas em homenagem à freguesia de onde é nativa. A outra com e minúsculo, em caixa baixa como dizem os jornalistas, é a do rifão e é igualmente a última coisa a morrer. Mas esta, senhora de setentas e vários, parece conservada em álcool (das melhores proveniências) ou é mesmo muito silicone, há quem diga que até se trata de um desvario de botox.
Fresca como uma alface vinda de Badajoz a horas mortas, a Esperança, a Dona Esperança é a madrinha da minha conversada actual, a Ermelinda, mais conhecida pela Malagueta de tão picante que é. Ela diz que é apenas quente, mas entre uma versão e a outra, eu que lhe sou tão chegado quanto seja impossível, classifico-a como uma fornalha alimentada a piripiri. Adorava que ela fosse polícia igualzinha àquelas que os Holandeses têm, boas. Mas, não se pode ter tudo.
Quando a Dona Esperança se apagar - trata-se de viúva sem filhos, o seu Engrácio mestre-de-obras já faz tijolo, raio de trocadilho, há uns bons sete para oito anos – o estaminé vai parar direitinho à única herdeira – a minha Ermelinda. Mas a gaja nunca mais bate a bota, estafermo. Eu, apesar de ser agente da autoridade, já pensei em passar a cota a ferro com um cilindro de acamar o asfalto. Porém, dava muito nas vistas. Assim, tenho de me resignar, na esperança da Esperança ir desta para o maneta por causa normais. Um ror de tempo.
A Linda, aboli a Erme já lá vão uns tempos, é tempo de economizar, por via da crise, entre as prateleiras do açúcar refinado e das bolachas Maria (em linguagem supermercadista diz-se gôndolas, sem nunca terem cheirado os eflúvios venezianos), dos sonasois e das fraldas para a terceira idade incontinente, abancava também na caixa registadora que, aliás, são cinco, a loja tem a sua dimensão. Mas também substitui a proprietária sempre que é caso disso, afilhada é afilhada, sobretudo para as ocasiões.
Trata-se de um caso bicudo, ao qual se pode perfeitamente aplicar o velho dito, ainda que com as adaptações necessárias: nem a madrinha morre, nem o agente almoça. E, no entretanto, lá continuo a rondar motorizadamente diversas zonas da capital, à espera de que os americanos funerários montem o velório com máquina de café e rebuçados de mentol.
Ora ontem, lá para as duas nocturnas, garrafas nem vê-las, íamos a passar na avenida da Liberdade, o Firmino condutor e eu, quando descortinei um bacano deitado num banco local – sublinho que não se tratava daqueles que estão em crise, mas mesmo assim ainda roub…, perdão, ganham uns milhões puxadotes – de camisa aberta e olhos fechados.
Ter-lhe-ia dado alguma coisa, sabia lá, um AVC, in enfarto ou uma bebedeira de caixão à cova? Saí da viatura e ao aproximar-me do cavalheiro o som do ressonar dele pareceu-me o do escape da mota do Fernandinho, filho da Olívia do quarto andar. O cagaçal é tamanho, que, no prédio, ele é conhecido pelo filho da pu..., salvo seja, a mãe não tem culpa dos cavalos do motor e o pai é um homem honesto e trabalhador. Vendedor de amendoins, pevides, camisinhas, chuingas e pó branco, ali em frente do Jardim da Estrela. Pelo estertor, pensei logo em apneia.
Sim, porque eu sou culto, fui até ao oitavo ano, depois cansei-me, agora ando nas Novas Oportunidades, coisa fina, bué da fixe. Leio muito, desde os clássicos até à Gente, à TV Mais, inclusive às Selecções do Ridares Daigeste. Não sei se é assim que se escreve, ainda não comecei com o Inglês, mas é assim que dizem os sabedores. E até me arrisco com a Hola! Não falando na Bola, no Record, no Jogo.
Daí que me tivesse dirigido ao cidadão e abanando-lhe suavemente o ombro direito, ele estava voltado para o esquerdo, disse-lhe baixinho: «O sono é a antecâmara da morte – Victor Hugô.» E ele, nada, nem uma pálpebra se entreabriu, nada, nadinha mesmo. Voltei a abana-lo, agora com mais intensidade, e repeti uns decibéis acima: «O sono é a antecâmara da morte – Victor Hugô.» Assim se pronuncia em Francês, disso tenho a certeza. E ele, virando-se para o outro lado, népia.
Enchi os pulmões e quase o atirei do banco abaixo com um safanãozão, dizendo-lhe alto e bom som e pela terceira vez: «O sono é a antecâmara da morte – Victor Hugo!», que se lixasse a correcta acentuação final. O homem ergueu a cabeça, abriu os olhos remelosos e respondeu-me: «Bardamerda! – José da Silva.»
São cansativas estas rondas nocturnas, ainda que em viatura policial.
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NE – Mais um textículo em que me socorro do idoso anedotário que conheço. Desculpem-me a falta de originalidade, mas – é a vida. (Também publicado na Travessa).
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Comentários
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Caro Antunes Ferreira
ResponderEliminarÉ sempre com prazer que leio os seus artigos, sempre tão bem acompanhados de boa disposição contagiante!
De tão originais que são, não é maçada nenhuma lê-los ,em mais de um blogue,por isso,continue! Porque nós, por estas bandas, sempre apreciámos aquilo que é bom!
Abreijos
Miriam