CRÔNICA - RAQUEL DE QUEIROZ, " UMA FLOR"

Lá está Rachel de Queiroz me olhando da fotografia, com ar faceiro, desafiador, a minha madrinha nestas crônicas. Fui algumas vezes a sua casa no Rio
Nesta crônica de estreia no JORNAL O POVO, a escritora Ana Miranda relembra a amizade e as tardes de prosa com a escritora Rachel de Queiroz ( Ceará )

Nesta crônica de estreia no JORNAL O POVO, a escritora Ana Miranda relembra a amizade e as tardes de prosa com a escritora Rachel de Queiroz ( Ceará ) 



Lá está Rachel de Queiroz me olhando da fotografia, com ar faceiro, desafiador, a minha madrinha nestas crônicas. Fui algumas vezes a sua casa no Rio de Janeiro, vivíamos a poucas quadras de distância. Ela morava na última rua do Leblon, num edifício que se chamava Edifício Rachel de Queiroz. Havíamos nos conhecido em alguma ocasião social, e ela me dissera que aparecesse em sua casa. Fui, levando meu segundo romance, pois Rachel já conhecia o primeiro. Depois disso, a cada livro meu publicado eu ia a sua casa, levando um exemplar. Era sempre o mesmo procedimento, eu telefonava, ela dizia que eu fosse, mas para ficar só cinco minutos, Rachel era muito franca e sem cerimônias. Sua moradia, um apartamento amplo, tinha móveis antigos e nobres como que heranças de família, imagens de santos, tapeçarias, tudo de uma austeridade interiorana. Nada de bibliotecas, estantes, ou máquinas de escrever, nada de nada que lembrasse ser ela uma grande dama da literatura. Sua atividade como escritora era íntima, e ela me disse que jamais deixaria alguém olhar ou fotografar o quarto onde trabalhava. Estava escrevendo Memorial de Maria Moura e fazia alguns comentários sobre a obra, como a inspiração na vida de Isabel I, rainha da Inglaterra no século XVI, a filha de Ana Bolena. Rachel me trazia um sentimento bom de ser uma das minhas tias, falando com a mesma entonação cantada, com a mesma ironia, verve e humor. De olho no relógio, aos cinco minutos eu me levantava para as despedidas, mas Rachel dizia que eu ficasse mais, e mais, até que a visita se alongava pelo anoitecer. Eram ótimas as prosas, Rachel contava-me histórias de bastidores sobre escritores de seu círculo, sempre com um olhar crítico, ou jornalistas, então episódios de sua própria vida como jornalista, como escritora, sua vida familiar, seus desgostos com a política, reclamações acerca do envelhecer, seu destemor diante da morte... Considerava a linguagem a parte mais difícil da edificação de um texto literário, que só seria literatura se houvesse estilo. Mas um romance só teria valor se fosse volumoso o suficiente para ficar em pé, preceito ensinado por sua mãe. Rachel tinha curiosidade sobre meu processo de pesquisa, fazia perguntas, e me deu uma trinca de livros antigos sobre dona Bárbara do Crato, a quem eu conhecia vagamente, passando-me o compromisso de escrever um romance sobre a vida dessa heroína republicana, e sua parenta distante. Não o escrevia porque lhe faltava índole para a pesquisa. E zombava de mim, dizendo que eu não era cearense. Em sua casa recebia jornalistas, romancistas, poetas, professores, todos cearenses, como se fosse um consulado do Ceará. Quando eles mencionavam minha condição de conterrânea, Rachel provocava uma discussão, é cearense, não é cearense... O que é ser cearense? Queria me meter em brios de filha da terra. Eu só seria cearense quando minha literatura visitasse o Ceará. Agora, aqui estou eu, de volta a minha terra natal, movida pelas saudades da Fortaleza de minha infância. E diante da tarefa de escrever sobre a cidade onde nasci. A última notícia que tive de Rachel é que, de lá do céu onde está, cuidando de nós, cearenses, ela batizou uma flor descoberta numa reserva natural em Linhares, Espírito Santo, junto com outras flores de nomes lindos: antúrio mirim, antúrio quilhado, bico branco, cipó caldeira, imbé feliz... Escolheram algumas espécies para representarem as regiões do Brasil, e cada uma delas foi batizada com um duplo nome científico, do modo como sempre fazem os biólogos, desde Lineu; no caso de Linhares, referindo-se a pessoa com obra dedicada à natureza, como Tom Jobim, o pai dos passarinhos. Rachel foi escolhida para representar o Nordeste, numa evocação a seu romance O quinze, que eternizou para todo o Brasil a nossa caatinga e a nossa seca. É evidente o amor que ela sentia pela vegetação da rica e incógnita mata branca. A flor dedicada a Rachel chama-se vulgarmente antúrio verdão. Seu nome de espécie, ainda não sei, talvez Anthurius Rachelis. Ou Anthurium Rachelius... Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. 

RAQUEL DE QUEIROZ, FOI CRONISTA DO JORNAL " O POVO". A conterrânea de Ana Miranda, a escritora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), foi cronista do O POVO nos anos 1990 e assim ficou até sua morte, em 2003. Jornalista, cronista, romancista, contista e tradutora, Rachel de Queiroz nasceu em 17 de novembro de 1910 e faleceu em 4 de novembro de 2003. Aos sete anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e, logo em seguida, para o Pará, mas, mesmo com tantas idas e vindas, nunca cortou laços com o Ceará. Responsável pela saída da família de sua terra natal, a seca não tardaria a ser convertida em tema literário. Assim nasceu O Quinze, romance que narra as agruras provocadas menos pelo fenômeno climático do que pela negligência dos governantes. Em texto publicado no O POVO um mês após a morte de Rachel, a pesquisadora Cecília Maria Cunha enumera alguns temas das crônicas da escritora: morte, saudade, infância, juventude, tempo, juventude, política. O rol era grande. Ao todo, estima-se que a cearense tenha dado forma a cerca de duas mil crônicas, espalhadas por órgãos de imprensa no Brasil inteiro. Entre 1945 e 1975, por exemplo, Rachel foi colaboradora de uma das mais prestigiadas revistas do País: O Cruzeiro. Reconhecimento por seu trabalho, Rachel de Queiroz foi também a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. Jornalista por vocação, Rachel foi convidada pelo presidente Jânio Quadros para assumir o Ministério da Educação, que ela tratou de recusar sob a alegação de que era apenas uma jornalista. Nada além disso. Entre outras obras, Rachel de Queiroz publicou João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992). Na crônica, deixou os livros A donzela e a moura torta (1948), 100 Crônicas escolhidas (1958), O brasileiro perplexo (1964), O caçador de tatu (1967) e outros. A escritora também dedicou-se ao teatro e à literatura infanto-juvenil. (Henrique Araújo). 

Fonte: 

Vídeo:
Fragmentos do documentário "Rachel de Queiroz: um alpendre, uma rede, um açude." Direção: Eliane Terra e Karla Holanda 30'; 1995; RJ/CE. Academia Brasileira de Letras.
2 Comentários

Comentários

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  1. Olá, Mazé!
    Muito bem! Vaelu voce ressaltar esta grande mulher cearense, jornalista que mereceu um lugar na Academia de Letras. Uma mulher que devemos respeitá-la mesmo não estando mais em nosso meio.
    Parabéns pela materia.

    Abraço da mana Eneide

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  2. Oi, Eneide!!!

    Obrigado por ter visitado o blog e deixado um comentátário em minha matéria.

    Desculpa a demora em vir aqui responder o seu comentário,mas é que eu estive há vários dias sem vir aqui.

    Ainda bem que você gostou, realmente a Raquel de Queiroz, é nossa conterrânea e uma grande mulher, por ser grande escritora e que venceu tantas batalhas contra descriminação dentro da sociedade.

    Os seus livros são de grande relevância no país inteiro e famosa escritora que fez parte da Academia Brasileira de Letras, sendo a primeira mulher brasileira a fazer parte.

    Obrigada e um beijo da mana,

    Mazé Silva

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