Um romance finalista do Prêmio LeYa que cruza perdas, memória e realismo fantástico
Uma história que transforma dor, tempo e legado em criação literária
Aos 74 anos, finalista do Prêmio LeYa Portugal transforma perdas em arte no romance “As vontades do vento”. Jozias Benedicto encontrou na literatura um novo caminho de criação e expressão após os 60, e o seu novo livro mistura realismo fantástico e memória para falar de tempo, família e reconstrução.
Artista visual e escritor, Jozias Benedicto converte perdas pessoais, memórias e inquietações numa narrativa que expande a fronteira entre o factual e o imaginado. Em “As vontades do vento” (Caravana Grupo Editorial, 195 págs), finalista do Prêmio LeYa Portugal de Literatura 2024, o autor maranhense confirma a robustez da sua obra, já marcada por distinções importantes como o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais, o Prêmio da Fundação Cultural do Maranhão e o Prêmio de Literatura do Estado do Pará.
Jozias pertence a uma geração de criadores que atingem, na maturidade, um ponto de viragem: escrever não apenas como gesto artístico, mas como modo de decifrar contradições, memórias e o próprio país. Publicou o primeiro livro depois dos 60 e desde então mantém uma produção regular, ousada e pessoal.
A sua prosa mistura vozes, tempos e geografias do Brasil profundo, sempre com um olhar para o que permanece sob a superfície das relações familiares. Como descreve a escritora Andreia Fernandes na orelha da obra, Jozias domina a linguagem e a técnica ao ponto de transpor estruturas do conto para um romance polifónico que alterna paisagens do interior com o pulso das grandes cidades.
Neste novo trabalho, a história mergulha numa família atravessada por segredos ligados ao clero, à prostituição e à herança escravocrata. A narrativa incorpora também as vozes de personagens já falecidos, que influenciam o curso dos acontecimentos e ajudam a revelar um enredo que se estende por gerações.
Segundo o autor, o livro reflete o choque entre um Brasil tradicional e um país que tenta modernizar-se, com todas as fraturas decorrentes dessa transição: desigualdade, violência, perda de vínculos e rupturas profundas no tecido familiar. Jozias afirma que nunca quis escrever um romance realista de intervenção — prefere abordar temas duros através de camadas poéticas, mágicas e fantásticas.
Dividido em três partes — O Interior, A Travessia e A Capital — o livro compõe-se de 49 capítulos narrados em primeira pessoa por diferentes personagens. O núcleo central é formado pelo pai, mascate, a mãe e os três filhos, Joaquim, Pedro e Bento. Ao redor deles orbitam figuras como Mocinha, empregada, e Elisa, cafetina decisiva para o rumo da família. A avó materna e o Monsenhor, já falecido e considerado santo no vilarejo, funcionam como peças estruturantes para o desfecho da narrativa. A cidadezinha do norte do Brasil, nos anos 1950, serve de cenário para esta história onde passado, memória e destino se entrelaçam.
A morte da mãe desencadeia a promessa dos filhos de cumprir o seu último pedido, mas antes da viagem o romance recua no tempo para revelar as origens, ascensões, desastres e quedas que moldaram a família. A alternância de narradores permite que cada episódio ganhe camadas de tensão, emoção e perspectiva, enquanto o ritmo se mantém firme entre revelações e silêncios. O desfecho confirma a habilidade do autor em trabalhar com múltiplas vozes sem perder unidade ou força dramática.
Natural de São Luís (MA), nascido em 1950, Jozias viveu no Rio de Janeiro, passou uma temporada em Brasília e, desde 2022, divide-se entre Brasil e Lisboa. Formado em Tecnologia da Informação, trabalhou na área durante quatro décadas até decidir dedicar-se integralmente à literatura e às artes visuais. Estudou na PUC-Rio, foi editor, curador, crítico de arte e mantém colaboração regular com o portal luso-brasileiro Estrategizando. A estreia literária deu-se em 2013, e desde então acumulou nove livros e diversos prémios nacionais.
O processo criativo também se cruzou com perdas duras, como a morte da mãe e um incêndio no apartamento. Ainda assim, Jozias sublinha que não busca catarse: o que o interessa é a relação da obra com o leitor e a forma como cada história encontra o seu espaço emocional em quem lê.
Trecho do livro (pág. 57)
“Meu pai tinha uma relação singular, uma relação física, quase sensual, com o dinheiro. Gostava de contar as cédulas e as moedas, limpá-las, arrumá-las por valor, sentir seu cheiro, avaliar o peso e o volume de pilhas dobradas ou de moedas empilhadas (...). Tinha grande facilidade para as operações matemáticas, e se sentia feliz com a concretude da riqueza, o cofre cheio, a carteira pesada. Não era gastador inconsequente, mas também não era avaro — esse prazer talvez o fizesse crer que o tão amado bem nunca deixaria de fluir para ele.”
A maturidade criativa de Jozias Benedicto, aliada à força do realismo fantástico, coloca “As vontades do vento” entre os romances brasileiros recentes que melhor exploram memória, identidade e legado. Uma leitura que não apenas conta uma história — ilumina as sombras de muitas outras.
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Um romance finalista do Prêmio LeYa que cruza perdas, memória e realismo fantástico
Redatora Permanente do luso-brasileiro Portal Splish Splash. Uma sonhadora que acredita no verdadeiro amor, no romantismo e na felicidade, que carrega a fé em cada detalhe da vida. VER PERFIL
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