De Vera Cruz a Brasil: a viagem de um nome entre fé, comércio e memória
"Um nome esquecido pode revelar a alma de uma época." Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
Nos alvores do século XVI, em plena Era dos Descobrimentos, Portugal encontrava-se na vanguarda das grandes explorações marítimas. A 22 de Abril de 1500, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral, navegando em direcção às Índias, avistou um novo território a oeste do Atlântico, que viria a ser o actual Brasil. Este território foi então batizado de Terra de Vera Cruz — a "Terra da Verdadeira Cruz".
Este nome, profundamente cristão, reflectia o espírito do tempo: uma Europa impregnada de religiosidade e de zelo missionário. Para os portugueses, descobrir novas terras era também estender a fé cristã e cumprir um desígnio espiritual. O nome “Vera Cruz” evocava a cruz de Cristo, símbolo central da fé, e atribuía ao acto de descobrir, ou de achar, um carácter quase sagrado.
A primeira menção clara do nome "Terra de Vera Cruz" encontra-se na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada, enviada ao rei D. Manuel I, poucos dias após o desembarque. Nela, lê-se:
"Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de
O Monte Pascoal (monte da Páscoa)
e à terra A Terra de Vera Cruz!"
Este excerto confirma que o nome foi atribuído ainda durante o reconhecimento inicial da costa, logo após o primeiro avistamento, e registado na documentação oficial.
Contudo, a designação "Terra de Vera Cruz" não se manteve por muito tempo. Já em 1501, surgem referências a "Terra de Santa Cruz", nome que viria a substituir o anterior em muitos documentos oficiais, incluindo cartas régias e relatos missionários. Essa mudança manteve a conotação religiosa, embora com uma tonalidade devocional mais típica da tradição católica da época.
Mais tarde, o nome Brasil ganharia força, originado da exploração intensiva do pau-brasil (Caesalpinia echinata), uma árvore de madeira avermelhada, altamente valorizada na Europa para uso como corante. Com o tempo, o nome comercial suplantou o religioso e passou a identificar a colónia nos mapas e documentos.
"Porquanto nesta terra se acha muita quantidade
de uma árvore a que chamam pau-brasil..." — (Registos da Casa da Índia, c. 1503–1504)
Conclusão
O nome "Terra de Vera Cruz" marca o início da presença portuguesa no território sul-americano. Mais do que um topónimo, era uma afirmação da missão espiritual que Portugal julgava cumprir nos mares do mundo. Embora tenha sido posteriormente substituído, o termo permanece como o primeiro nome oficial do Brasil, tal como registado por Pero Vaz de Caminha.
As fontes da época — crónicas, cartas, registos e mapas — não só narram os eventos da descoberta, mas revelam as intenções e a mentalidade de um império em expansão. A memória da "Terra de Vera Cruz" resiste como vestígio de uma visão sacralizada do mundo e da história.
Se seguirmos a lógica da língua portuguesa, seria natural que os primeiros habitantes desta "Terra de Vera Cruz" fossem chamados veracrucianos. O sufixo - ano é justamente o que a língua aplica a lugares para formar gentílicos: romano, lusitano, goês, fluminense.
Aliás, a História dá-nos exemplos claros de como nomes antigos podem sobreviver como identidade. A Lusitânia, província romana que abrangia grande parte do atual Portugal, foi habitada por tribos como os lusitanos. Ainda hoje, porém, os portugueses se reconhecem como "lusos", herdeiros simbólicos desse passado. Por maioria de razão, também o Brasil e os brasileiros teriam pleno direito de resgatar o uso cultural de "veracrucianos", em memória da sua primeira designação oficial: Terra de Vera Cruz.
Mas o destino das palavras é caprichoso: o termo veracruciano acabou consagrado apenas como gentílico de Veracruz, no México, cidade fundada pelos espanhóis em 1519. Assim, se hoje fizermos uma pesquisa, encontraremos sempre "veracruciano a referir-se a um mexicano de Veracruz – nunca a um brasileiro.
E, no entanto, a palavra tem direito a uma segunda vida, pelo menos no campo da imaginação histórica e literária. Afinal, "veracruciano" foi — ou pelo menos poderia ter sido — o primeiro nome dos brasileiros, se a história tivesse seguido outro rumo.
Uma lembrança de como nomes que pareciam seguros desaparecem, enquanto outros, às vezes quase por acaso, vingam e se eternizam.
Seria até interessante se algum historiador ou linguista resgatasse este uso como curiosidade cultural ou literária.
Entretanto, entre amigos e quando escrevo sobre o Brasil e os brasileiros, não raro chamo ao Brasil "Terra de Vera Cruz", e aos brasileiros, "veracrucianos".
Fontes Históricas e Bibliografia Crónica da Descoberta do Brasil, atribuída a Duarte Pacheco Pereira. João de Barros, Décadas da Ásia, Lisboa, 1552. Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, 1551. Gaspar Correia, Lendas da Índia, c. 1556. Documentos da Casa da Índia (Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
De Vera Cruz a Brasil: a viagem de um nome entre fé, comércio e memória
Vímara Porto
Por: Armindo Guimarães
Este nome, profundamente cristão, reflectia o espírito do tempo: uma Europa impregnada de religiosidade e de zelo missionário. Para os portugueses, descobrir novas terras era também estender a fé cristã e cumprir um desígnio espiritual. O nome “Vera Cruz” evocava a cruz de Cristo, símbolo central da fé, e atribuía ao acto de descobrir, ou de achar, um carácter quase sagrado.
A primeira menção clara do nome "Terra de Vera Cruz" encontra-se na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada, enviada ao rei D. Manuel I, poucos dias após o desembarque. Nela, lê-se:
Este excerto confirma que o nome foi atribuído ainda durante o reconhecimento inicial da costa, logo após o primeiro avistamento, e registado na documentação oficial.
Contudo, a designação "Terra de Vera Cruz" não se manteve por muito tempo. Já em 1501, surgem referências a "Terra de Santa Cruz", nome que viria a substituir o anterior em muitos documentos oficiais, incluindo cartas régias e relatos missionários. Essa mudança manteve a conotação religiosa, embora com uma tonalidade devocional mais típica da tradição católica da época.
Mais tarde, o nome Brasil ganharia força, originado da exploração intensiva do pau-brasil (Caesalpinia echinata), uma árvore de madeira avermelhada, altamente valorizada na Europa para uso como corante. Com o tempo, o nome comercial suplantou o religioso e passou a identificar a colónia nos mapas e documentos.
— (Registos da Casa da Índia, c. 1503–1504)
Conclusão
O nome "Terra de Vera Cruz" marca o início da presença portuguesa no território sul-americano. Mais do que um topónimo, era uma afirmação da missão espiritual que Portugal julgava cumprir nos mares do mundo. Embora tenha sido posteriormente substituído, o termo permanece como o primeiro nome oficial do Brasil, tal como registado por Pero Vaz de Caminha.
As fontes da época — crónicas, cartas, registos e mapas — não só narram os eventos da descoberta, mas revelam as intenções e a mentalidade de um império em expansão. A memória da "Terra de Vera Cruz" resiste como vestígio de uma visão sacralizada do mundo e da história.
Se seguirmos a lógica da língua portuguesa, seria natural que os primeiros habitantes desta "Terra de Vera Cruz" fossem chamados veracrucianos. O sufixo - ano é justamente o que a língua aplica a lugares para formar gentílicos: romano, lusitano, goês, fluminense.
Aliás, a História dá-nos exemplos claros de como nomes antigos podem sobreviver como identidade. A Lusitânia, província romana que abrangia grande parte do atual Portugal, foi habitada por tribos como os lusitanos. Ainda hoje, porém, os portugueses se reconhecem como "lusos", herdeiros simbólicos desse passado. Por maioria de razão, também o Brasil e os brasileiros teriam pleno direito de resgatar o uso cultural de "veracrucianos", em memória da sua primeira designação oficial: Terra de Vera Cruz.
Mas o destino das palavras é caprichoso: o termo veracruciano acabou consagrado apenas como gentílico de Veracruz, no México, cidade fundada pelos espanhóis em 1519. Assim, se hoje fizermos uma pesquisa, encontraremos sempre "veracruciano a referir-se a um mexicano de Veracruz – nunca a um brasileiro.
E, no entanto, a palavra tem direito a uma segunda vida, pelo menos no campo da imaginação histórica e literária. Afinal, "veracruciano" foi — ou pelo menos poderia ter sido — o primeiro nome dos brasileiros, se a história tivesse seguido outro rumo.
Uma lembrança de como nomes que pareciam seguros desaparecem, enquanto outros, às vezes quase por acaso, vingam e se eternizam.
Seria até interessante se algum historiador ou linguista resgatasse este uso como curiosidade cultural ou literária.
Entretanto, entre amigos e quando escrevo sobre o Brasil e os brasileiros, não raro chamo ao Brasil "Terra de Vera Cruz", e aos brasileiros, "veracrucianos".
Fontes Históricas e Bibliografia
Crónica da Descoberta do Brasil, atribuída a Duarte Pacheco Pereira.
João de Barros, Décadas da Ásia, Lisboa, 1552.
Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, 1551.
Gaspar Correia, Lendas da Índia, c. 1556.
Documentos da Casa da Índia (Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
Comentários
Enviar um comentário
🌟Copie um emoji e cole no comentário: Clique aqui para ver os emojis