Atlas da Violência de 2018


Artigo analisa dados do documento sob a perspectiva da população negra

Por: Juarez Tadeu de Paula Xavier*

O jovem negro – pretos e pardos – é a principal vítima da violência física e simbólica na sociedade brasileira, segundo o Atlas da Violência de 2018, organizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A pesquisa realizada entre 2005 e 2015 mostra que de cada cem vítimas de homicídios 71 são de jovens negros. Foram 62.517 mortes violentas intencionais em 2016, média de 30,3 homicídios a cada 100 mil habitantes; em 2015, 28,9; em 2014, 29,8 mortes. 

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A violência destrói os jovens corpos negros, e provoca na comunidade afro-brasileira sofrimento psíquico, como indicam as referências técnicas para a atuação de profissionais da psicologia, do Conselho Federal de Psicologia. As mortes violentas provocam altas taxas de mortalidade, tecem a atmosfera do medo nas periferias das cidades e congela a população negra em uma bolha social que, cindida pela segregação racial, se caracteriza como um “universo paralelo”, com realidades distintas entre negros e não negros, pela distância que há entre os indicadores sociais desses dois grupos humanos. 

A cor da pele é um marcador social importante que disciplina a distribuição criteriosa dos direitos, seleciona quem vive, quem e como morre nas principais cidades brasileiras. 

A cada cem vítimas de homicídios, 71 eram de jovens negros, entre os anos de 2005 e 2015. As mortes violentas de pretos e pardos, segundo os critérios adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], cresceram 18,2%, e os homicídios dos não negros – brancos e amarelos – recuaram 12,2%, acentuando as assimetrias sociais. A população indígena, assim como a negra, registra linha ascendente nas taxas de violências.

As intervenções policiais – civil e militar – contribuíram com a elevação dessas taxas, em todo o território nacional, e reforçaram as tendências registradas em pesquisas anteriores.

A letalidade das intervenções policiais teve crescimento de 25,8% em relação a 2015. Foram 4.222 pessoas mortas em decorrências dessas ações. Entre 2009 e 2016, foram 21.892 mortes. Dessas, 99,3% eram homens, 81,8% jovens entre 12 e 29 anos, e 76,2% negros. 

Entre os anos de 2015 e 2016, 76% das vítimas dessas intervenções eram homens negros. Nesse quesito, a violência provocou mortes nos dois lados de “linha da vida”. Os policiais negros foram as principais vítimas das corporações, civil e militar: 56% das vítimas de homicídio eram de homens negros.

Violência de gênero

O fenômeno afeta toda a população negra, para além da fronteira de gênero. Entre as mulheres negras, os dados registram a mesma tendência ascendente, em relação às mulheres não negras. Assim como a cor da pele, o gênero é um marcador social seletivo do aumento das taxas de homicídio.

Dos 4.606 homicídios de mulheres -uma mulher foi assassinada a cada 2 horas em 2016 – 65% eram negras [pretas e pardas]. A violência sexual cresceu 3,5%, e atingiu o dígito de 49.497 ocorrências notificadas de estupros. Os números – dada a cicatriz que caracteriza essa forma de violência – podem ser maiores, em razão das subnotificações, apontam os especialistas. 

As mulheres negras são as principais vítimas dessas ocorrências. Elas são 44% das mulheres que sofreram assédio em espaços públicos, as mulheres não negras, 35%; 11% das que sofreram assédio em transportes públicos; as mulheres não negras, 9%; e 7% das mulheres que sofreram abordagens agressivas em festas e eventos; as mulheres não negras, 4%.

Atmosfera de terror nas periferias

A pesquisa abordou os reflexos subjetivos dessa violência. Segundo os dados, a população negra vive em permanente estado de terror, pela proximidade com essas agressões. 38,5% negra têm parentes ou amigos próximos assassinados; 18% dessa população têm parentes ou amigos desaparecidos; 81% têm medo de morrer assassinado; 78% têm medo de ser acusado de um crime, e 77% têm medo de ter um filho preso injustamente.

Essa atmosfera de pânico reproduz as subjetividades do racismo estrutural que se equilibra sobre as cabeças de negras e negros. “Cada vez mais há uma diferença brutal entre as vítimas”, observa Samira Bueno, diretora do Fórum de Segurança Pública. Para a pesquisadora, os indicadores sociais da população negra caminham em direção opostos, em relação a população não negra. As taxas de homicídios de não negros caem, enquanto as taxas dos homicídios entre os negros crescem, para homens e mulheres.

As mortes entre as mulheres negras deram um salto de alguns dígitos, enquanto as mortes entre as mulheres não negras caíram, analisa Samira.

A pesquisa aponta a tendência de crescimento da violência, em relação aos anos anteriores, de acordo com os indicadores. A base de dados do estudo – o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do ministério da Saúde, entre 2005 e 2015, os registros policiais publicados no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o registro das mortes violentas por causa indeterminada (MVCI) – sinalizam nessa direção.

“O aumento dos homicídios é expressivo”, diz Samira Bueno. Entre os anos de 2015 e 2016, os eles passaram de 59 para 62 mil. “Se comparar com os registros policiais, o próprio anuário já indicava esse aumento, mas em 2016 o sistema de saúde mostra até mais mortes do que o próprio registro policial indicava”, informa Samira. 

Para a diretora do Fórum de Segurança Pública, os números refletem o cenário de guerra, cujo parâmetro é a do Vietnã: “Em 20 anos, entre 1955 e 1975, morreram 1,1 milhão de pessoas no Vietnã. No Brasil, em 20 anos, entre 1995 e 2015, morreram 1,3 milhão. As 59.080 vítimas de homicídio em 2015 representam 161 mortes por dia. “Isso equivale a um avião caindo todos os dias no Brasil”, compara a diretora executiva do FBSP. Pior: sem provocar comoção social.

Em 2016, os 61.283 homicídios -7 pessoas assassinadas por hora – representaram crescimento de 4% em relação a 2015. Para os autores do Atlas, o número de mortos equivale à explosão da bomba atômica que dizimou a cidade de Nagasaki, em 1945, no Japão.

Genocídio de jovens negros

O traço étnico-racial da violência salta das páginas do relatório, para a trágica realidade social. “Eu diria que o aumento da violência letal tem se traduzido principalmente em um reforço dessa desigualdade, que faz parte de um racismo estrutural, cuja face mais perversa é a violência letal, ou seja, uma vulnerabilidade muito maior de negros do que de não negros, nos assassinatos de forma geral”, analisa Samira Bueno.

Essa vulnerabilidade de pretos e pardos despertou a atenção de organizações globais. A Anistia Internacional, em seus relatórios sobre o Brasil, informou que, em 2012, 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Trinta mil eram jovens, entre 15 e 29 anos, 77% eram negros. A organização denunciou a tendência à impunidade, já que dos casos denunciados, “menos de 8%” chegam a ser julgados. 

Esse horizonte de vulnerabilidade incitou a Anistia Internacional a realizar a campanha “Jovem Negro Vivo”.

“A Anistia Internacional tem realizado uma série de ações para trazer mais pessoas para o debate e enfrentamento da questão do altíssimo número de homicídios de jovens no Brasil”, informa Marcelle Decothé, responsável pelas ações de mobilização da campanha junto à juventude.

Segundo ela, o foco da campanha são os grupos de jovens, o movimento negro, o movimento de cultura, as periferias das cidades, as organizações de direitos humanos locais, as universidades públicas e privadas, com atuação articulada com as seções da Anistia Internacional pelo mundo.

As ações de denúncia se distendem pelo país. A violências sistemáticas têm sido denunciada por organizações que atuam conectadas às populações em condições de vulnerabilidade, nas periferias das grandes e médias cidades brasileiras.

“Esse volume de óbitos, e principalmente a discrepância entre a queda na morte de brancos e aumento nos assassinatos de negros, deixa clara que a situação brasileira é de um genocídio da população negra”, afirma Júlio Cezar de Andrade, diretor do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo.

 A organização faz parte de um arco extenso de entidades comprometidas com a reversão desse fenômeno social.

Mesmo com a redução das desigualdades sociais, com a adoção das políticas de distribuição de renda, o fluxo ascendente dos indicadores da violência não arrefeceu. Pelo contrário, acentuou-se!

“É curioso como o crescimento econômico do Brasil e a redução da desigualdade que o país viveu nas últimas décadas não se traduziu em melhora. O crescimento econômico foi  positivo, mas sozinho não deu conta de paralisar a máquina de destruição de jovens corpos negros e pobres”, diz Samira.

O relatório indica a necessidade da adoção de políticas públicas articuladas, em diversas áreas sociais: políticas públicas universais, para todos os segmentos em condições vulneráveis; políticas públicas focadas, para os grupos mais frágeis entre os vulneráveis, e políticas públicas interseccionais que atendam as demandas sociais, segundo os marcadores de gêneros, sociais e étnico-raciais, conforme os dados das pesquisas. Entre elas, as cotas sócio-étnico-raciais.

ODS e as políticas públicas

Ao final do relatório, os especialistas apontam as possibilidades potenciais no horizonte das populações vulneráveis – jovens, mulheres, pobres e negros –, embutidas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se baseiam nos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), da Organização das Nações Unidas (ONU).

A erradicação da pobreza (1), a igualdade de gênero (5), o trabalho decente e crescimento econômico (8), a redução das desigualdades (10) e a paz, justiça e instituições eficazes (16), entre os 17 objetivos elencados pela ONU, estão no foco das ponderações dos pesquisadores envolvidos na elaboração do Atlas da Violência, como possibilidades para a superação da fenda abissal que segrega, baseada na cor da pele, gênero e pobreza, as condições de vida e morte de negros e não negros na sociedade brasileira.

A evolução acelerada dos indicadores de homicídios no país põe em risco o futuro da juventude, com a produção em escala industrial de uma “geração perdida”, e sabota o futuro de jovens negros que, vítima do genocídio, como argumenta a Coordenação Nacional de Entidades Negras, enfrenta uma máquina de triturar vidas que procura roubar-lhes o futuro.

Pesquisadores: Daniel Cerqueira (Ipea), Renato Sergio de Lima (FBSP e FGV), Samira Bueno (FBSP), Cristina Neme (FBSP), Helder Ferreira (Ipea), Danilo Coelho (Ipea), Paloma Palmieri Alves (Ipea), Marina Pinheiro (FBSP), Roberta Astolfi (FBSP) e David Marques (FBSP). Estagiários: Milena Reis e Filipe Merian.

*Juarez Tadeu de Paula Xavier - Departamento de Comunicação Social - Membro do Núcleo Negro Unesp para Pesquisa e Extensão - coordenador do programa “Educando para a Diversidade” - Presidente da Comissão Permanente para tratar de Assuntos Éticos.
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