Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Sempre a fanocar, para cima e para baixo  

Terra Chã, 24 de Agosto
Hoje plantei um gladíolo. É vermelho alaranjado, igual a nenhum outro que alguma vez tenha visto. Cortei quase tudo o que restava do talo, enfiei a cepa na terra, no cantinho junto às escadas que dão para a mata, e reguei com solenidade.
Mas nem por isso me senti absolvido do meu crime.
Aquele gladíolo estava em cima da minha mesa de trabalho há mais de um mês, dentro de um desses copinhos de vidro onde vêm uns iogurtes sensaborões que só a Catarina consegue comer. Durante todo esse tempo, eu olhava-o e pensava: “Como pudeste?!”
Falava para mim próprio. Em Junho, a meio das férias em São Jorge, descemos da Serra do Topo à Fajã dos Cubres, nós e os H. É o passeio mais bonito dos Açores, o que o candidata a passeio mais bonito de Portugal, e a beleza sucedia-se de tal modo avassaladora que nos era impossível abarcá-la.
Durante duas horas, deixámo-nos ficar na Fajã da Caldeira de Santo Cristo. Bebemos coca-colas no Borges, nadámos na lagoa, passeámos pelas pequenas charnecas orladas de flores, com o planalto erguendo-se a toda a extensão do nosso olhar.
Depois fizemo-nos à estrada novamente, percorrendo aquela picada rente ao mar. Subimos e descemos, adiantámo-nos e atrasámo-nos uns dos outros. Eu demorei-me várias vezes, porque queria tirar fotografias. E, na Fajã do Belo, dei de caras com um gladíolo silvestre – lindo, vermelho alaranjado, igual a nenhum outro.
Não foi a única coisa que encontrámos. Também encontrámos a ruína perfeita, onde nos imaginámos os quatro a passar a meia-idade, escrevendo e traduzindo e vivendo a vida bela e simples. Chegámos a telefonar a saber do preço. 
Depois retomámos o caminho. Subimos e descemos, adiantámo-nos e atrasámo-nos uns dos outros. Quando chegámos à Fajã dos Cubres, a Isabel, que nos esperava com a Laura e o Vasquinho, sorriu-me com bonomia:
– Bonito gladíolo. Trouxeste da Fajã do Belo.
E era bonomia, de facto, o que o seu sorriso exibia. Mas em esforço.
Todos os meses ela percorria aquele trilho, sozinha, no seu ritual de introspecção. Todos os dias dezenas de turistas o percorriam também. Nenhum deixava de se deter em frente àquele gladíolo silvestre que rasgava o verde e o azul da paisagem, erguendo-se vermelho como um pequeno farol em frente ao oceano. E só eu fora capaz de subir o canavial e, com as minhas mãos imundas e egoístas, arrancá-lo à terra.
Senti-me envergonhado, com aquela flor na mão. Nem pedir desculpa me apaziguou, nem o fez o modo como, constrangida, a Isabel trocou a bonomia por um sorriso de condescendência, daqueles que sugerem: “Mas estás mesmo a sério? Vais preocupar-te com uma insignificância dessas?”
Centenas, talvez milhares pessoas, tinham contemplado aquele gladíolo – o modo como se inscrevia na paisagem, a declinação que constituía nela, a sua verdade. Eu não me limitara a apanhar uma flor silvestre. Roubara-lhe o espírito.
Portanto, mantive a cepa dentro do boiãozinho, ao lado deste computador, durante semanas. De vez em quando, erguia os olhos para ela: “Como pudeste?!” Consolavam-me apenas as obras no jardim, que iam progredindo. Era evidente: eu não tinha aprendido nada nestes quatro anos. Mas ao menos haveria de encarregar-me de que aquela flor continuasse a viver.
Nos últimos dias, dediquei imenso tempo às obras. Construí uma braseira, com um alicerce e dois murinhos de bagacina, pedra sobre pedra, e que depois consolidei com cascalho e betão tingido. Demorei horas em arrumações e limpezas, ajeitei as amoreiras e as gelosias. Plantei novas flores ao longo dos muros.
Ficou bonito. O Américo apareceu várias vezes:
– Para escritor, não está mal.
Vieram os sogros e fumámos um cigarro a olhar para tudo aquilo. Juntaram-se os cunhados e sentámo-nos os seis, findo o churrasco, assando marshmallows. Conversámos horas infindas, à volta daquela braseira. Falámos desse dia improvável em que teremos todos casa na ilha.
Mas aquilo em que eu pensava era onde plantaria o gladíolo.
Hoje de manhã, peguei na pá de jardinagem e fui enterrá-lo junto às escadas da mata. Ficará mesmo em frente aos degraus que dão acesso ao patamar mais nobre do jardim, na linha directa do olhar de quem sai a porta de casa – escarrapachado para quem se distraia em qualquer direcção a partir de qualquer ponto da propriedade.
Será um sinal da minha imundície e do meu hedonismo. A pergunta que me inquieta é se foi o Joel Neto urbano ou o Joel Neto rural que o roubou ao lugar da sua dignidade. Às vezes – defendia-se Freud – um charuto é apenas um charuto. Mas nunca, sei-o hoje, uma flor é apenas uma flor.
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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”



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