Memórias de um ogro midiático

DO TEXTO:
 

Figura central para a indústria cultural do País no século 20, o polêmico produtor Carlos Imperial é tema de documentário, que chega aos cinemas no segundo semestre, e tem sua biografia reeditada e ampliada.

 Desconhecido para muitos brasileiros, o produtor Carlos Imperial marcou a cultura de massas do País no século 20 – mais precisamente entre a segunda metade dos anos 1950, quando lançou os amigos Roberto e Erasmo Carlos, e o final dos anos 1980. Além da dupla, artífice da jovem guarda, outros grandes artistas, como Tim Maia, Wilson Simonal, Eduardo Araújo, Clara Nunes, Elis Regina e Tony Tornado, tiveram o caminho para o sucesso abreviado graças ao faro privilegiado do controverso produtor.

 Conterrâneo do Rei Roberto, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, filho do banqueiro Gabriel Corte Real e da professora Maria José Cardoso, Imperial partiu de sua terra natal aos 7 anos, para morar com a família no Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, a partir da segunda metade dos anos 1950, quando ajudou a consolidar a febre do rock’n’roll no País com o programa Clube do Rock, atração da extinta TV Tupi, afirmou-se com um marketing de guerrilha que, não raro, usava de expedientes questionáveis para dar visibilidade a seus pupilos. Mentiroso, encrenqueiro, devasso, machista e surrupiador de composições alheias, Gordo, como muitos o chamavam, é figura inimaginável para os padrões politicamente corretos deste início de século 21.


Quem dele jamais ouviu falar ou aqueles que têm rarefeita a memória de sua passagem tresloucada pela história do País (ele morreu em 1992, aos 56 anos, em decorrência de uma miastenia) têm agora duas boas oportunidades de colocar suas qualidades e defeitos no fiel da balança e concluir, afinal, quem foi esse personagem incomum que, além de lançar inúmeros artistas, foi compositor, jornalista, apresentador de rádio e TV, diretor de teatro, cineasta de pornochanchadas e político – sim, o Gordo foi também o vereador mais votado do Rio de Janeiro nas eleições de 1982, pelo PDT de Leonel Brizola.

 A primeira chance de revisão vem em formato literário na biografia Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial (Editora Planeta, 410 páginas), escrita por Denilson Monteiro, aliás, criador do vulgo “Ogro Midiático” mencionado no título desta reportagem. Lançado em 2008 pela Editora Matrix, o trabalho criterioso e imparcial de Denilson volta agora às livrarias em versão ampliada. Já o documentário Eu Sou Carlos Imperial veio a público em duas exibições festejadas, na mais recente edição do festival É Tudo Verdade, realizada em abril último em São Paulo. Ainda sem data definida, o filme entrará em cartaz no segundo semestre de 2015. Codirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, autores do celebrado documentário Uma Noite em 1967 (2010), o longa-metragem também preza pela isenção sobre seu protagonista e contou com o apoio de Denilson, que apontou atalhos das pesquisas e também colaborou com o roteiro, escrito a seis mãos.


Do rock ao reinado da pilantragem

Compositor sazonal, apesar de musicista mediano ao piano e violão, Imperial foi craque em escrever sucessos certeiros, desde os tempos de Clube do Rock. De sua pena, saíram clássicos como A Praça, arrasa-quarteirão na voz de Ronnie Von, Mamãe Passou Açúcar em Mim e Nem Vem Que Não Tem, par de canções que abriu caminho para a fase em que Simonal abandonou a sofisticação bossa nova de seus primeiros álbuns e mergulhou na pilantragem, gênero criado por Imperial a partir da fusão de elementos do samba, do rock, do soul e do jazz latino. Uma mistura quente a cargo do Som Três, combo instrumental que tinha à frente o pianista Cesar Camargo Mariano


Autointitulado “Rei da Pilantragem” – em momento transitório para a sua fase mais cafajeste, quando adota cabelo comprido, barba e roupas extravagantes –, um belo dia, Imperial soube que seu sucesso Nem Vem Que Não Tem atravessou o oceano Atlântico e explodiu na França ao ser incluído no repertório de cantora sazonal da diva Brigitte Bardot. A releitura fez tamanho sucesso que motivou a criação de uma das peças de marketing infalíveis do Gordo: uma foto do próprio portando uma maleta 007, aberta e cheia de dólares, supostamente enviada por BB, como antecipação de direitos autorais pelo sucesso de Tu Veux Ou Tu Veu Pax, o título da versão. A imagem, divulgada na imprensa brasileira, trazia um pôster da atriz ao fundo e vinha acrescida da frase: “A Brigitte tirou dinheiro de vários homens. Eu sou o único que conseguiu tirar dinheiro dela”.


Imperial, no papel e na telona .

Nascido em Belém em 1967, o paraense Denilson Monteiro mudou-se com a família para o Rio de Janeiro aos 2 anos. Cursou História, não chegou a concluir a faculdade, mas é reconhecido hoje como um dos mais importantes biógrafos da sua geração. O primeiro trabalho a abrir os olhos das editoras para suas qualidades de pesquisador foi Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia (Objetiva, 2007), em que foi braço direito de Nelson Motta no garimpo de documentos e imagens raras do saudoso Síndico. Depois, Denilson se consolidou com trabalhos como A Bossa do Lobo: Ronaldo Bôscoli (Editora Leya, 2011), a foto-biografia Divino Cartola: Uma Vida em Verde Rosa (Casa da Palavra, 2013) e Chacrinha: A Biografia (Casa da Palavra, 2014).



Quando em 2002 idealizou Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial, trabalhava para a cervejaria Antártica e, por meio do amigo João Pedro de Lima Jr, teve acesso ao acervo documental mantido pelo extinto Jornal do Brasil sobre o produtor. A lembrança das sandices protagonizadas pelo “Ogro Midiático” na TV brasileira era forte em sua memória afetiva. “Conheci o Imperial quando eu ainda era criança, na época em que ele era jurado do Silvio Santos. Via o cara na TV e ficava bem assustado. Achava que ele era muito louco, que vivia drogadão. Quando comecei a pesquisar sua história, descobri que ele era caretaço.

” Pouco depois de acessar os arquivos do Jornal do Brasil, ao descobrir por meio de uma nota da jornalista Hildegard Angel que uma festa em homenagem a Imperial seria organizada por amigos, Denilson não hesitou em procurá-la para tentar aproximação com eventuais fontes. Foi então que conheceu os filhos do Gordo, a primogênita Maria Luiza e o caçula Marco Antônio. Como soube que eles pretendiam realizar projetos para resgatar a memória do pai, antecipou que planejava escrever sua biografia e teve apoio de ambos, que deram a ele total liberdade para esmiuçar os arquivos deixados pelo produtor, mantidos intactos pela família.


Foi então que vieram à tona inúmeros documentos, fotos, rolos de filmes 16 mm e fitas VHS. O processo complementar de pesquisas durou seis anos e demandou visitas frequentes a gravadoras, rádios, emissoras de TV e instituições públicas, como o Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro e a Biblioteca Nacional. Denilson também fez cerca de duzentas entrevistas com amigos, artistas e pessoas que orbitavam o cotidiano de Imperial. Em 2008, depois de várias recusas de outras editoras, publicou o livro pela Matrix.

 Além de recolocar nas prateleiras título esgotado que merece destaque, a reedição de Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial apresenta novo projeto gráfico e foi acrescida de fotos e depoimentos inéditos. Apesar de a narrativa elegante de Denilson motivar certa empatia do leitor com o personagem, é justo dizer que o autor dispensa tratá-lo como mocinho ou bandido. No entanto, na entrevista concedida à Brasileiros, defendeu características que distinguem Imperial de similares contemporâneos. “Ele não seria capaz de fazer chacota com gente humilde. Algo que alguns supostos humoristas de hoje fazem com frequência. Imperial iria provocar gente grande como o Boni (o poderoso executivo da Rede Globo). Se estivesse vivo, estaria causando nas redes sociais.”


A amizade entre os jornalistas e documentaristas Renato Terra e Ricardo Calil teve início em ambiente profissional quando se conheceram, em 2002, na empresa IBest, no Rio de Janeiro. Renato concluía a faculdade e havia escolhido como tema de sua monografia a chamada Era dos Festivais. Anos mais tarde, como Ricardo também era crítico de cinema e tinha algum conhecimento técnico, naturalmente, surgiu a ideia de se unirem no projeto que culminou em Uma Noite em 1967. O êxito de público e crítica do primeiro filme motivou a dupla a seguir adiante. Em entrevista à Brasileiros, Ricardo explicou que eles tinham o interesse de fazer um documentário sobre o tema mentira. Durante as pesquisas de Uma Noite em 1967, depois de ouvir inúmeros personagens mencionar Imperial e seu repertório de factoides marqueteiros, chegaram à conclusão de que poderiam, por meio da história do produtor, tratar do mesmo assunto pretendido para o segundo filme.

 Com a publicação da primeira edição da biografia escrita por Denilson, o caminho natural foi procurá-lo. Ele logo aproximou os diretores dos filhos de Imperial e a reação foi idêntica à dispensada ao biógrafo. “Eles nos deram total liberdade e também entenderam que não faria o menor sentido fazermos um filme chapa-branca, que escondesse as polêmicas”, explica Ricardo. O projeto começou a ser produzido em 2011. No ano seguinte, os diretores ganharam um edital do Rio Cine, que viabilizou parte da execução. Depois, receberam o apoio do Canal Brasil e de sua produtora, a Afinal Filmes. Concluído em 2014, Eu Sou Carlos Imperial foi montado por Jordana Berg, braço direito de Eduardo Coutinho, que finalizou Últimas Palavras, derradeiro trabalho do mestre morto em fevereiro de 2014. 


A sucessão de grandes feitos e de episódios absurdos narrados no livro e no filme – aliás, pouco mencionados nesta reportagem para não estragar a surpresa dos leitores e da plateia – dá um nó na cabeça. A sensação desperta pela história de Imperial é mesmo de amor e ódio. Mais à vontade para tecerem julgamentos depois de o filme ter sido concluído e colocado à prova, ao serem questionados sobre a importância de Carlos Imperial para a cultura do País, os diretores de Eu Sou Carlos Imperial convergiram. “Ele foi decisivo para a formação e consolidação da nossa – ainda renegada – cultura pop. Revelou artistas fundamentais, abriu espaços na TV, no cinema e no rádio. E mais: embalou tudo isso numa personalidade pública única. Era o vilão, o cafajeste, o debochado. Fez do personagem Carlos Imperial um elemento cultural tipicamente brasileiro que ajudava, com mentiras e armações, a promover seus pupilos”, afirma Renato. “O reconhecimento de sua importância para a cultura do País é bem menor do que deveria ser. Vamos fazer um exercício hipotético e imaginar que, por algum motivo, essas pessoas que ele lançou não tivessem seguido adiante. É impossível imaginar o País sem Roberto, Erasmo, Elis ou Tim Maia”, conclui Ricardo.




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