Um piano ao cair da tarde

DO TEXTO:




Por: Rita Inácia da Silva

Às vezes Deus "alivia" um pouquinho a barra do cotidiano, da rotina que seca o cérebro e a alma, quase nos transformando em máquinas e nos faz um agrado.

Quero compartilhar com todos os amigos um desses momentos.

UMA CENA INESQUECÍVEL

Como de rotina, após o trabalho, quase sempre completo meu percurso com o metrô. Na estação Belém, a saída é no andar de cima e apesar do barulhão dos trens em movimento, subindo as escadas ouvi um som de piano maravilhoso (às vezes eles têm essa iniciativa, mas só nas estações de bairros privilegiados, como Paraíso na zona Sul), a escada era rolante mas fui subindo ansiosa, deparando com uma cena inesquecível: um piano todo fubicado de madeira vagabunda, saindo lascas, tocava um homem aparentando uns 60 anos, calvo, queimado de sol, vestia uma camiseta descorada e velha. Nos pés, tênis surrado, calça jeans que ele deveria ter há anos de cor indefinida, próximo aos pés uma mochila provavelmente com a vasilha da marmita comida no almoço, as mãos grossas, secas, cheias de fissuras (muito diferente das mãos de pianista que imaginamos, por conta da delicadeza) unhas curtas, gastas, com resíduos provavelmente de graxa, sei lá, enfim... um trabalhador braçal certamente.

FASCINAÇÃO

Mas que mágica era aquela que ele fazia com as mãos naquele piano tosco? Observei que as pessoas estavam extasiadas, porém não se aproximavam. Não me fiz de rogada, cheguei bem pertinho do lado esquerdo, joguei minha bolsa e apoiei os braços no piano, ele demorou algum tempo para perceber minha presença, estava longe com sua música. Quando me viu sorriu e do nada tocou "Fascinação". Quase chorei de emoção. Saiu uma lágrima, mas disfarcei. No término, o povo perante a minha iniciativa havia se aproximado, encheu de gente em volta dele. A cada canção terminada ele ficava me olhando como se pedisse para eu escolher, não entendi de imediato, aí ele foi tocando Sunrise, Wave... Eis que se de mim se aproximou um homem, provavelmente portador de algum trastorno psíquico, meio sujo, barbudo, muito magro, mas possuidor de uma certa beleza nos traços do rosto (não me assusto porque é minha gente, meus pacientes, já fiquei tardes inteiras em praça com pessoal da rua portador de trastorno), falava muito rápido e desconexamente, ora comigo, ora com o pianista, que desconfiei que não falava por deficiência ou porque não queria, não fiquei sabendo... segurei no ombro do andarilho e disse para ele "fale mais devagar pra eu entender" ai ele tentou, mas consegui captar alguma coisa com o pai dele e a música "Bom dia Vietnã" (a principal da trilha sonora do filme, não sei o nome, mas conheço a música) o pianista ouviu e tocou... o meu novo amigo, parou e disse: "Ele tocou a música do meu pai" e chorou e eu também (não tem tatú que aguente um negócio desse) e mais um tanto de gente que estava por lá, ouviu a música até o fim enxugou a lágrima e se foi.

TOCA ROBERTO CARLOS PRA MIM? COMO VAI VOCÊ!

Aproveitei a deixa, cheguei pertinho do pianista e falei: "Toca Roberto Carlos pra mim? Como Vai Você!”. Adoro essa em instrumental e cantando acho bonito só com o Rei, já contei que cheguei atrasada no Sírio (trabalhava a tarde) porque fiquei ouvindo um artista de rua na Paulista tocando no violão, e comprei o CD dele independente (não era pirata). Foi a interpretação ao piano mais que já ouvi, acho que nem o Rei ouviu igual, deveria haver um espírito pianista famoso encostado ali eu acredito. Ao termino ele agradeceu as palmas e veio gente não sei de onde e ele queria ir embora e ninguém deixava, queriam ouvir mais Roberto Carlos. Fiquei pensando comigo "Realmente Roberto Carlos é o cara!”. Ele acabou indo embora e acho que não falava mesmo só sorria. Fiquei muito impressionada e o banquinho do piano parecia mágico. Sentou um adolescente com uma das mãos atrofiadas e tocou lindamente três canções, sentou uma mulher também fantástica e depois um rapaz me perguntou se eu ia tocar... eu disse-lhe que ele poderia sentar-se e completei "A música necessita de dois elementos para existir; os que a tocam e cantam e os que apreciam". Ele me disse que cantaria três canções dedicadas a mim, porque achou bonito o que eu disse e era uma pena não cantar mais, tinha que ir para aula! Agora me digam Deus é maravilhoso, sempre nos mostrando que a vida vale a pena sempre.

Até um dia, Amigos de todas as horas!

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