Diálogo entre Pessoas - Daniel Piza -

DO TEXTO:


Lisboa, bairro do Chiado, um dia chuvoso de outono, final dos anos 20. Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis se sentam ao redor de uma mesa no café A Brasileira. Pessoa está de capote e de bengala, um tanto introspectivo, talvez preocupado com as contradições de algum mapa astral; Caeiro veste roupas de camponês, com respingos de barro na calça: Campos mostra o relógio Cartier que acaba de trazer de Paris: Reis carrega um dicionário de latim e pede vinho e água para todos.


 Pessoa, o mais velho dos quatro, dá início à conversa contanto que começou a escrever um livros de poemas que planeja chamar de "Mensagem" e fazer conter todas as características da alma portuguesa em seu caráter universal. O trio se espanta. Até agora nenhum deles havia publicado livros; todos os poemas eram produzidos para revistas e jornais. Por que então a novidade?

- Estou farto de improfícuas agonias - responde Pessoa. - Pus a alma no nexo de perdê-la, e o meu princípio floresceu em Fim.
- Mas tu mesmo - pergunta Campos - não disseste que tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo?
- E não pediste em canção ao Senhor - lembra Caeiro, aparentemente não recuperado da noite de ópio anterior - que eles nos desse ao menos a força de não mostrar a dor a ninguém?
- E quem disse que mostro? - reagiu Pessoa. - Não uso o coração, por isso escrevo livre do meu enleio. Sentir? Sinta quem lê!
- A tua lenha é só peso que levas - intervém Reis - para onde não tens fogo que te aqueça.
- Como assim? - perguntam os outros, confusos.
- Pouco usamos do pouco que mal temos. A obra cansa, o ouro não é nosso - diz Reis.
- Mas, meu caro - replica Caeiro, com um semblante ao mesmo tempo, alegre e triste -, o único sentido íntimo das coisas e elas não terem sentido nenhum. Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
- Logo - diz Reis -, põe quanto és no mínimo que fazes.
- Então quero publicar - arremata Pessoa. - Penso profundamente, por isso tenho saudades.
- Mas por que fazer das saudades e pensamentos um livro? - insiste Reis.
- Porque todo começo é involuntário. Deus é o agente.
- Mas apenas mortos somos só nossos, entende? O que acho é que a lembrança esquece.
- Eu acho que a alma se sente e faz - argumenta Pessoa - conhece só porque lembra o que esqueceu. E, se é assim, vivemos porque houvesse memória em nós do instinto da raça. O mais é carne.
- Que angústia te enlaça? - perguntam os outros, juntos.
- Meu ser tornou-se-me estranho, e eu sonho sem ver os sonhos que tenho. A angústia é a vela que passa na noite que fica. Somos todos cadáveres adiados que procriam.
- Eu também - acrescenta Campos - sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento e ver passar a Vida faz-me tédio. Sou um espalhamentos de cacos sobre um capacho por sacudir.
- Então porque tu escreves? - contesta Reis.
- Para me unir ao exterior pela estética. Sou definidamente pelo indefinido - diz Campos, reticente - e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim. Mas ao menos fica a amargura do que nunca serei.
- À arte do mundo cria - assente Reis, dando baforadas no cachimbo. - Assim na placa o externo instante grava seu ser, durando nela.
- O meu misticismos é não querer saber - retruca Caeiro. - Não sei o que é Natureza: canto-a. Se eu morrer novo, sem poder publicar livro nenhum, peço que não se ralem por minha causa. Se assim acontecer, assim está certo.
- E o nome inútil que teu corpo usou, vivo, na terra - diz Reis, apontando para Caeiro -, como uma alma, não lembra.
- Mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender - ressalta Caeiro. Os outros não conseguem definir se ele está sereno ou agoniado. - Todo o mal do muno vem de nos importarmos uns com os outros, quer para fazer o bem, quer para fazer o mal. A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos. Querer mais é perder isto, e ser infeliz. Valeu a pena?
- Tudo vale a pena - responde rapidamente Pessoa - se a alma não é pequena. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.
- Eu nunca fiz mais do que fumar a vida - observa Campos. - Produtos românticos, nós todos ... Mas, como um Deus, não arrumei nem a verdade nem a vida.
- Mas porque tanta tristeza? - pergunta Reis.
- Não sei. Desde manhã eu estava um pouco triste. E o ia deu em chuvoso. - Olha para fora e vê a chuva caindo. - Dêem-me o céu azul e o sol visível. Névoa, chuvas, escuros, isso eu tenho em mim.
- Tu é louco - critica Pessoa, sob olhar atônito dos companheiros.
- Louco, sim, louco, porque quis grandeza qual a Sorte não dá. Mas sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia?
Caeiro olha para o copo d'água à sua frente. - Vês? Formam-se bolhas na água que nascem e se desmancham e não tem sentido nenhum salvo serem bolhas de água que nascem e se desmancham.
- Sentido nenhum? - pergunta Pessoa. - É do português querer, poder ser só isto: o inteiro mar, ou a orla vã desfeita. O todo, ou o seu nada.
- Mas e se ele não quiser? - questiona Campos.
- Quem quer é Deus. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar... O tédio? A mágoa? A vida? Deixa-se... Eu cumpro informes instruções de além, e as bruscas frases que aos meus lábios vêm soam-me a um outro e anômalo sentido. Veja a cor do outono: é um funeral de apelos para minha dissonância...
- Mas isso não é fingimento? - interfere Reis. - Se não houver em mim poder que vença o futuro, já me dêem aos deuses o poder de sabê-lo.


- O poeta é um fingidor - diz Pessoa, irônico. - Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
Caeiro está visivelmente cansado dessa conversa toda. Com um gesto de muxoxo, diz: - Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse, pensaria nisso. E não estou nem alegre nem triste. Esse é o destino dos versos. Escrevi-os e devo mostrá-los porque não posso fazer o contrário. Passo e fico, como o Universo. Tu não concordas?
- Concordo - diz Pessoa, sem passar muita convicção. - Afinal, de quem é o olhar que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, quem continua vendo enquanto estou pensando? Às vezes, na penumbra de meu quarto, toma outro sentido em mim o Universo: é uma nódoa esbatida de eu ser consciente sobre minha idéia das coisas. - Dá um suspiro. - A fé não tem forma na matéria e na cor da Vida.
- É, sentir a vida convalesce e estiola - diz Campos. - Acordamos e o mundo é opaco, levantamo-nos e ele é alheio. Saímos de casa e ele é a terra inteira, mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. A metafísica, amigos, é uma conseqüência de estar mal disposto.
- E se colho a rosa é porque a sorte manda - ajunta Reis, depois erguendo o copo na direção dos outros. - Gozemos escondidos. Com mão mortal elevo à mortal boca o passageiro vinho, baços os olhos.
- De eterno e belo há apenas o sonho. Por que estamos nós falando ainda? - completa Campos. Os olhos de todos ficam tristes, até mesmo o de Caeiro.
- Os meus pensamentos são contentes - diz ele. - Só tenho pena de saber que eles são contentes. - Olha de novo para fora. A chuva parece ainda mais forte. - Pensar incomoda como andar à chuva quando o vento cresce e parece que chove mais. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.
- A minha também - dizem juntos Campos e Reis. Os três olham para Pessoa aguardando a sua reação. Depois de um tempo em silêncio: - Caiu chuva em passados que fui eu - diz ele enfim, como olhos de ressaca, mirando um horizonte que não existe. - Narrei-me à sombra e não me achei sentido. Erro-me, e nada mais quero nem peço... Triste de quem é feliz! Vive porque a vida é dura. - E agora Pessoa fixa seus olhos nos amigos. - Sim, vocês estão certos. Ser descontente é ser homem. Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.


Pessoa bebe o último gole de seu vinho. Olha para o romântico e entediado Álvaro de Campos, para o hedonista e cético Ricardo Reis, para o bucólico e realista Álvaro Caeiro. Pensa em lhes apontar as contradições, mas vê que elas também são parcialmente suas. Pensa em lhes dizer "eu criei vocês", mas se sente também uma criatura deles. Deixa então o copo sobre a mesa e se despede: - Adeus.
- Adeus - respondem os outros em uníssono, enquanto partem cada um para um lado.
A chuva também se fôra.

(Publicado no caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de 04/12/98)
Colaboração:
Maria José Gil


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3 Comentários

Comentários

  1. Oi, maninha!
    Gostei muito deste teu post.
    Sou um admirador nato do Pessoa.
    Beijinhos

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  2. Olá maninho!

    Eu sei disso, por que acha que coloquei?
    Assim que achei, li, e pensei: meu maninho vai gostar...
    Aí está, acertei.

    Beijos,
    Carmen Augusta

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  3. Olá Carmen

    Eu só posso agradecer por este post tão belo!
    Obrigada ,minha amiga!
    Fernando Pessoa é incomparável, é um dos meus poetas preferidos!
    Daniel Piza concebeu um diálogo excelente entre Fernando Pessoa e os seus heterónimos!

    Beijos
    Miriamdomar

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