A Esfera

DO TEXTO: Num momento digno de filme de ficção científica de baixo orçamento, a esfera revelou-se uma espécie de telefone intergaláctico sem fios. Uma tecnologi

 

Nós já sabíamos tudo! 

 

Por: Armindo Guimarães

  

O mistério começou de forma tão insólita que, sinceramente, nem Sherlock Holmes com um balde de cafeína conseguia decifrar. Ali estava eu, numa tarefa altamente intelectual (ou seja, a remexer papéis e a empilhar recortes como um bibliotecário sem critério), quando um som metálico me interrompeu.

Levantei os olhos, pronto para culpar o gato pelo estrondo (apesar de nem ter um), e eis que vejo a escrivaninha a recuperar do susto. Algo batera no tampo e rolara para o meio do quarto. Sim, rolara! O som era tão nitidamente o de um berlinde no soalho que até temi que a minha infância estivesse a fazer-se ouvir do além.

"Um berlinde?!" pensei, indignado. "Mas eu nem jogo berlindes desde... bem, desde que deixei de caber debaixo da mesa da cozinha!"

Afinal, não era um berlinde qualquer. Era uma esfera metálica, com peso suficiente para intimidar qualquer miúdo de 6 ou 9 anos e deixar qualquer adulto desconfiado. Tinha um ar inocente, mas não me enganava: era uma esfera com segredos.

Agora vinha o verdadeiro quebra-cabeça: como raio aquilo foi ali parar? A janela estava fechada. Não havia vizinhos defronte (só prédios em construção, e duvido que os pedreiros andem a atirar berlindes de titânio para testar a gravidade). Por cima? Nada. Dos lados? Não se via vivalma. A esfera não podia ter entrado. E, no entanto, lá estava ela, a rir-se descaradamente da minha lógica.

Convencido de que a minha sanidade estava em jogo, fingi indiferença, coloquei a esfera na escrivaninha e voltei aos papéis. Obviamente, não consegui concentrar-me. A esfera chamava-me, como um bolo de chocolate numa dieta.

Deixei-me cair no sofá, puxei de um cigarro e comecei a meditar. E nisto, a minha mente, sempre eficaz a desviar-se do essencial, levou-me para perguntas existenciais: porquê das pirâmides do Egipto? Porquê das experiências nucleares? Porquê do preço do café estar sempre a subir?

E foi aí que me bateu: a esfera estava ligada a isto tudo!

Num momento digno de filme de ficção científica de baixo orçamento, a esfera revelou-se uma espécie de telefone intergaláctico sem fios. Uma tecnologia alienígena capaz de transmitir pensamentos. Tinha sido enviada por seres de Alfa Centauro para comunicar com um ser humano. E quem era esse ser humano? Pois, quem mais podia ser? Eu! (Claramente, deviam estar com pouca escolha lá para os lados de Alfa Centauro.)

Não que tivessem pressa em apresentar-se. Primeiro, precisavam de decifrar a minha linguagem. (O que explica por que razão a primeira mensagem que recebi foi um inexplicável "Bacalhau à Brás".) Quando finalmente a comunicação engrenou, recebi uma informação estarrecedora: os Centaurianos eram, basicamente, como nós. A mesma estrutura, o mesmo espírito de perfeição, mas sem a mania de andar a poluir planetas e a discutir no Twitter.

E foi aí que me deram a grande revelação: a humanidade estava numa crise existencial. Sabíamos fazer carros voadores (ou quase), mas não sabíamos porque queríamos voar. Produzíamos mais do que nunca, mas sem saber para quê. Queríamos criar vida artificial, mas mal sabíamos viver com a natural. Os Centaurianos olhavam para tudo isto com um ar confuso e coçavam as cabeças.

No fim, despediram-se com um aceno e levaram a esfera com eles. (Claramente, perceberam que já não havia mais esperança para nós.)

Fiquei ali, de cigarro apagado nos dedos, a olhar pela janela. As crianças corriam pela rua, berrando como se estivessem a ser perseguidas por um enxame invisível de abelhas. Uma velhinha travava uma batalha com o saco das compras. Um cão de aspeto pensativo estava sentado contra uma casa meio arruinada.

E, no meio desse cenário de caos organizado, sussurrei para mim mesmo: "Foram-se embora... Nós já sabíamos tudo!".

 

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