Desconstruindo estereótipos: mulheres conquistam espaço na condução de ônibus

A automação e a introdução de tecnologias modernas permitem que pessoas de qualquer tipo físico possam conduzir veículos de diferentes portes. Sobretu
Mulheres motoristas de ônibus.

“É uma profissão que requer cuidado, atenção, coisa que as mulheres sabem fazer”


A transição energética no transporte público é uma oportunidade para tornar o setor mais inclusivo. 

As histórias das motoristas Ilmara Sales e Carla Maltez dos Santos inspiram outras mulheres a assumir cargos antes vistos como “masculinos”


Embora metade das pessoas com carteira de motorista no Brasil atualmente seja mulher, somente 3,5% das pessoas habilitadas na categoria D, que permite dirigir ônibus, são do sexo feminino, de acordo com dados do Ministério dos Transportes, de outubro. Proporcionalmente, a maior parte delas está no Sul (6,8%), seguida do Sudeste (5,4%), Centro-Oeste (5,2%), Norte (3,8%) e Nordeste (2,3%). 

Ilmara Sales é uma das raras mulheres motoristas de ônibus da Bahia, maior estado do Nordeste. Há 8 anos, ela trabalha conduzindo coletivos em Salvador. Começou dirigindo caminhão 20 anos atrás por parceria com seu ex-marido, com quem vivia nas estradas e não tinha residência fixa. “Foi natural, comecei a ajudar. Eu rodava de manhã; ele, de noite, e vice-versa. E aí, quando percebi, a profissão já tinha entrado na minha vida”, lembra.

Motorista é uma profissão historicamente atribuída aos homens, especialmente no caso de veículos pesados. No passado, conduzir caminhões ou ônibus exigia girar volantes pesados sem assistência hidráulica, frear com sistemas rudimentares que demandavam grande esforço no pedal e lidar com suspensões rígidas que ampliavam o desgaste físico. Essa realidade mudou. 

A automação e a introdução de tecnologias modernas permitem que pessoas de qualquer tipo físico possam conduzir veículos de diferentes portes. Sobretudo no caso do ônibus elétrico – modelo que Ilmara conduz atualmente e faz parte do sistema BRT de Salvador. “Quando dirigi o elétrico pela primeira vez, nem percebi que o ônibus tinha ligado. Parece uma pluma, uma nave. É confortável, cansa bem menos”, conta Ilmara. 

Pesquisas mostram que o estilo de condução de cada motorista impacta diretamente a eficiência energética e a autonomia dos veículos. Práticas como acelerações e frenagens bruscas podem aumentar o consumo de energia, enquanto uma condução mais suave e constante tende a otimizar o desempenho da bateria. Comportamentos agressivos no trânsito, por exemplo, podem resultar em um consumo energético até 14% superior, de acordo com um estudo realizado em São Paulo.

Diferenças comportamentais entre gêneros podem influenciar esses aspectos, com pesquisas sugerindo que homens tendem a adotar uma condução mais agressiva ou arriscada, enquanto mulheres geralmente são mais cautelosas e atentas às normas de trânsito. Uma análise das estatísticas de trânsito no Brasil mostra que, proporcionalmente ao número total de condutores habilitados de ambos os sexos, infrações por exceder a velocidade permitida são duas vezes mais frequentes entre homens do que entre mulheres. E os homens se envolvem em 183% mais colisões do que as mulheres. “É uma profissão que requer cuidado, atenção, coisa que as mulheres sabem fazer”, observa Ilmara. 

A despeito de estereótipos e expectativas de comportamento de uma pessoa por causa de seu gênero, o treinamento de motoristas se mostra determinante para a eficiência energética e segurança no trânsito. Instrutor de motoristas, Florisvaldo Silva de Jesus já formou mais de 2.000 condutores e condutoras. Ele destaca que os treinamentos atualmente incluem orientações para identificar e evitar atitudes machistas e discriminatórias, incentivando o respeito e o cuidado na comunicação e tratamento de colegas, independentemente do gênero ou orientação sexual. "Além de promover a inclusão feminina, a empresa também conta com motoristas LGBTQIA+, alguns mais abertos, outros mais reservados. Não cabe ficar julgando. O importante é que cada um respeite o outro como profissional que é”, afirma. 

Profissões livres de gênero
Mesmo que ainda seja comum a ideia de que certas profissões são "para homens" e outras "para mulheres", na prática hoje em dia a principal barreira está na atração de talentos e em despertar o interesse de mulheres para se imaginar em profissões em que elas ainda são a minoria.

Aos 53 anos de idade, casada e mãe de três homens, Ilmara conta que se sente acolhida pelos colegas de trabalho, que as provocações ficaram no passado e isso nunca a fez pensar em desistir da carreira de motorista. “Qualquer besteira que fizesse era motivo de críticas, diziam: ‘vai pra casa, vai pilotar fogão! Às vezes eu me chateava, outras vezes não. Eu dizia pra eles que eu pilotava também o fogão, a máquina de lavar, a moto, a agulha de crochê. Piloto a casa, os filhos, o marido”, diverte-se.  

A presença de mulheres na posição de motorista e em outros cargos no setor de transportes traz uma variedade de perspectivas às empresas. Equipes mais diversas tendem a compreender melhor as necessidades dos diferentes perfis de clientes, oferecendo serviços mais inclusivos e equitativos – uma questão especialmente relevante, considerando que 64% dos passageiros de ônibus é composta por mulheres, segundo a pesquisa QualiÔnibus, realizada pelo WRI Brasil em 2023.

Entre as pessoas que Ilmara teve a oportunidade de transportar ao longo de quase uma década, apenas dois passageiros, um homem e uma mulher em situações distintas, desistiram de seguir viagem por causa do gênero da motorista. “A maioria dos passageiros fica maravilhada. Fica surpresa, uma surpresa boa. Principalmente as mulheres. A gente empodera as mulheres. E também recebo muito elogio de homem”, conta a motorista.

Mais segurança contra assédio
A Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana (TUMI, na sigla em inglês) – da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, uma empresa federal alemã de cooperação técnica, que apoia a implementação de ônibus elétricos no Brasil – percebe que a presença de mulheres em profissões tradicionalmente masculinas, como a de motorista, pode inspirar e encorajar outras mulheres a buscar oportunidades semelhantes, além de ser fundamental para a construção de uma sociedade mais equitativa e inclusiva.

“Peguei três vezes em linhas diferentes ônibus com motoristas mulheres. Senti confiança delas no modo de dirigir, atenciosas na parada. Fico admirada de ver o desenvolvimento de nós mulheres, de onde nós somos capazes de chegar, basta querer”, diz a passageira Maria de Fátima Santana, aposentada (foto). 

Outra vantagem é desencorajar potenciais assediadores – algo fundamental quando 97% das brasileiras afirmam já ter sofrido algum tipo de assédio enquanto usavam algum meio de transporte. Estudos do Banco Mundial destacam que a visibilidade de mulheres em funções operacionais no transporte público pode reduzir o assédio e a importunação sexual. 

A publicação da iniciativa TUMI “Inclusão do Trabalho Feminino no Transporte Público”, com um estudo de caso sobre um programa de mulheres condutoras em Jalisco, no México, chegou à mesma conclusão. A percepção de que há uma maior vigilância pode reduzir comportamentos inadequados por parte dos passageiros. Além disso, mulheres motoristas tendem a ser mais sensíveis às experiências de outras mulheres, podendo identificar e responder de forma mais eficaz a essas situações – o que pode inspirar outras mulheres a utilizarem o transporte público com mais confiança e até encorajá-las a realizar denúncias.

“O exemplo arrasta”
Com a transição energética em curso no transporte público brasileiro, novas oportunidades profissionais devem surgir, seja no cargo de motorista, ou em outros postos de trabalho, como técnica de manutenção. A primeira fase do Novo PAC está financiando 2.296 ônibus elétricos e a infraestrutura necessária para recarga em 66 municípios.

Um caminho geralmente seguido por empresas de ônibus para atrair o interesse de mais profissionais é contratar mulheres primeiro como cobradoras, e então convidá-las a se tornar motoristas. Foi assim com Carla Maltez dos Santos, 41 anos, ex-professora de Ensino Fundamental, na profissão de motorista há cinco anos. A nova carreira transformou a vida de Carla, que vem de uma família de educadores. Ela conta que literalmente sonhou com a mudança -- duas vezes. 

“Eu sonhei com uma farda verde e branca. Quando acordei e me dei conta de onde era o uniforme, enviei meu currículo, e na mesma semana fui chamada”, diz Carla. Ela passou por cinco entrevistas para ser contratada como cobradora, e poucos meses depois teve um novo sonho. "Eu lembro como hoje. Eu estava dirigindo dentro da garagem, estacionando o ônibus." Ao acordar, Carla contestou consigo mesma, pensando que não sabia dirigir, mas interpretou o sonho como um sinal e aplicou para a habilitação, e depois para a categoria D. 

Esse episódio reforçou sua confiança e determinação para evoluir na carreira: ela se tornou manobrista dos ônibus na garagem da operadora, até ser promovida à motorista de linha, e mais tarde, ao BRT. Hoje tem um salário maior do que na antiga carreira, o que a permite ser chefe de domicílio, e sustentar os três filhos, além de prestar serviço comunitário na igreja da qual faz parte. 

Sua primogênita, de 24 anos, trabalha como cobradora e já conquistou sua casa própria. “As palavras são boas, mas o exemplo arrasta. E hoje vejo o quanto posso influenciar”, orgulha-se Carla. Para o futuro, ela é capaz de se imaginar em cargos mais altos: “O céu é o limite. Hoje estou aqui no BRT, mas amanhã posso estar em outro lugar”.

Novas oportunidades
Atrair mulheres para o cargo de motorista, passando primeiro pela posição de cobradora é uma prática comum e importante – especialmente em um momento de transformação no setor com a introdução de novas tecnologias de pagamento automático. No entanto, Salvador enfrenta desafios nesse processo, e está longe de ser um caso isolado no país.

“A escala de trabalho, o ambiente, os terminais, finais de linha, módulos de conforto – foi tudo muito pensado para o homem. Precisamos fazer uma reconfiguração para buscar formas de bem-estar para a mulher”, conta Taline Evelle Costa, que antes trabalhava como agente de trânsito e foi promovida à gerente de estudos e pesquisas da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana de Salvador (Semob), um trabalho essencial para fundamentar decisões estratégicas e acelerar a inclusão no setor. 

A prefeitura trabalha em parceria com as empresas operadoras de transporte público para tornar o ambiente de trabalho mais atraente para as mulheres. Um projeto financia a primeira habilitação nas categorias A, B, C e D, além de cursos profissionalizantes para inserir mulheres no mercado de trabalho como motoristas remuneradas.

O programa “Mulher no Volante”, iniciado em 2022 pela Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), em parceria com o Sest Senat, já disponibilizou 215 vagas de formação em todas as categorias da carteira nacional de habilitação (CNH), e 112 mulheres concluíram o curso desde então – 25 habilitadas para conduzir passageiros. Aberto para o público feminino em geral, o programa prioriza atrair candidatas que tenham sofrido violência doméstica.

Em 2024, 12 mulheres foram contratadas ou promovidas para a função de motorista por empresas operadoras de ônibus em Salvador – 7 delas provenientes do projeto. Outras foram contratadas para demais funções. Desde outubro, o programa vem sendo ampliado, a fim de atrair e formar profissionais para os diversos cargos, como mecânica, técnica em manutenção, despachante, além de posições de liderança. A ampliação do projeto integra também a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Emprego e Renda de Salvador (Semdec), e tem o apoio da iniciativa TUMI, o WRI Brasil e o C40.

Um exemplo internacional de sucesso é a empresa pública de transporte coletivo "La Rolita", lançada em 2022 pela prefeitura de Bogotá, na Colômbia, com o apoio técnico da iniciativa TUMI. Composta majoritariamente por mulheres conduzindo ônibus elétricos, resultou em melhorias na segurança e na qualidade do serviço, além da redução de emissões de gases poluentes.

Os exemplos mostram que a diversidade de gênero pode levar a melhorias na qualidade do serviço, incluindo interações mais positivas com os passageiros e um ambiente mais acolhedor. Mas para que prosperem, é preciso superar desafios como preconceitos, falta de infraestrutura adequada, como vestiários, banheiros e uniformes personalizados, e a necessidade de políticas de apoio, como treinamentos específicos e campanhas de sensibilização. Só assim será possível construir um transporte público mais seguro e inclusivo para todas as pessoas. 

Sobre a TUMI – Iniciativa Transformadora de Mobilidade Urbana 
A Transformative Urban Mobility Initiative (TUMI, na sigla em inglês) é implementada pela GIZ e financiada pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ). Formada por 11 parceiros, entre bancos de desenvolvimento, redes de cidades, think tanks, e organizações do terceiro setor, é a principal iniciativa global de implementação em mobilidade sustentável. A visão da TUMI é ter cidades prósperas, com desempenhos econômicos, sociais e ambientais alinhados com a Nova Agenda Urbana, a Agenda 2030 e o Acordo de Paris.
Sobre a GIZ 
A Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH é uma empresa federal de benefício público que apoia o governo da Alemanha, bem como clientes dos setores público e privado, em uma ampla variedade de áreas, incluindo o desenvolvimento econômico e o emprego, a energia e o meio ambiente, a paz e a segurança. Como prestadora de serviços em diversas partes do mundo no campo da cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável, a GIZ trabalha em conjunto com seus parceiros e parceiras para desenvolver soluções efetivas que ofereçam melhores perspectivas às pessoas, e melhorem, de forma sustentável, suas condições de vida. No Brasil, a Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável atua, principalmente, em duas áreas temáticas: proteção e uso sustentável das florestas tropicais, assim como energias renováveis e eficiência energética. 
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