Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Podes entrar que a vaca não mexe

Lisboa, 26 de Maio
Tem várias tatuagens, uma t-shirt preta e a barba por fazer. Debruça-se sobre mim e aponta-me o aparelho.
É um tipo enorme, um metro e noventa ou mais, cento e dez quilos no mínimo. Tenho a impressão de que podia desfazer-me com um gesto. E, porém, há bondade no seu olhar. Sinto-me em boas mãos.
Estamos naquilo muito tempo, e vou aprendendo coisas sobre ele. Estudou Matemática e Belas Artes. Deu aulas no liceu. Entretanto, não sei como, falo-lhe dos meus cães. E é então que ele faz recuar por momentos a máquina, como se já não tivesse a certeza de conseguir continuar.
A cadela dele está a morrer. Tem 14 anos e é uma pit bull , como seria de esperar de um tipo enorme, com tatuagens e t-shirts de rock. Foi o primeiro cão que teve e será o último. “Não quero voltar a passar por isto”, diz, e desvia o olhar.
Não chega a lamuriar-se: conta-o apenas. Durante década e meia, aquele animal foi a sua companhia. As namoradas sucederam-se, a cadela esteve sempre lá. Dormia na cama dele. Ia com ele à praia. Sentava-se na areia e fechava os olhos, a gozar o sol.
Há dois meses, perdeu vigor. Ao fim de uns dias, na praia de sempre, um macho veio a correr na sua direcção e travou. Não chegou a tocar-lhe, e nesse momento ele soube. A perda de acção nos membros, a falta de apetite, as inquietações nocturnas – foram apenas confirmações.
Agora, ele despacha os últimos trabalhos. Para a semana está de férias. Será a última semana com a sua cadela. Irão à praia, porque, de tudo o que ela gostava de fazer, a única coisa que ainda consegue é essa: fechar os olhos sobre a areia quente, gozando o sol.
Depois, terá chegado a hora. O veterinário já sabe.
Fico ali, a ouvir aquele homem, e continuo a ouvi-lo muito tempo ainda, inclusive depois de ter parado de falar. Em nenhum momento se refere ao nome da cadela pelo nome: não tem com o bicho a relação de um bibelô – chama-lhe “ela” como se chama “ela” a uma amiga ou até a uma filha.
Penso nisso o resto do dia, inclusive já de regresso a casa: a última semana, o aproximar da hora, a derradeira noite. Depois penso outra vez nas proporções daquele homem, na sua extrema fragilidade, e percebo que continua a não haver muita coisa tão capaz de comover-me como isso: o colosso vulnerável, o gigante prodigioso apanhando em falso pelo coração.
Vai acompanhar-me, a história daquela cadela. Nunca soube o seu nome.

Terra Chã, 28 de Maio
Regresso à ilha e, antes ainda de sair do aeroporto, já estou a ser convidado para uma festa.
– Eh, huóme, tenho toiros à porta de casa no sábado! – diz-me alguém no salão das Chegadas.
Torço a cabeça, num pesar:
– Ah, caramba, sábado não posso... Tenho ensaio da marcha.
E ele:
– Olha que pena. Mas, pronto, tens compromissos, tens compromissos!
Abre um sorriso caloroso: para o ano não escapo. Eu abro outro e não chego a censurar-me pela malandrice.
Foram precisos cinco anos para reaprender a lidar com o excesso de solicitações sociais da província, e desta província em particular. Tinha estado fora demasiados anos, já nem me lembrava que era assim.
Primeiro, toda a gente tem uma actividade artística, ou etnográfica, ou social. Só isso dá milhares de eventos a que comparecer. Depois, nunca fica por festejar a mais pequena efeméride: aniversários individuais e de casamento, dias da mãe, do pai e da criança, matrimónios, baptizados e coroações, dias dos amigos e das amigas, dos compadres e das comadres, touradas, bodos-de-leite, iluminações, impulsos momentâneos.
No Inverno, é um frenesim. No Verão, uma insanidade. É preciso não deixar uma só noite por ocupar. O que se torna bem mais divertido de ver quando se encontra um modo de lidar com isso.
Eu, que não sei dizer que não (mas isso é matéria para o divã), demorei muito a encontrá-lo. De início, tentava ser honesto: tinha trazido uma lisboeta para a ilha, precisava de guardar o sábado – ao menos o sábado – para estar em família. Depois, não tive outro remédio senão sê-lo mesmo: os compromissos iam-se avolumando e eu, se calhar, ficando velho – precisava de trabalhar.
Não resultava. Dizia:
– No sábado não posso. Preciso de ficar em casa com a patroa.
E logo ouvia:
– Oh. Tens 52 sábados por ano!
(O meu sentimento de culpa já no vermelho, a latejar.)
Mudava para:
– Não posso, tenho de trabalhar.
E era pior:
– No sábado?!
– Tu, também, és sempre a mesma coisa...
– Bom, mas tens de jantar, não?
Até que percebi que, se precisava mesmo que me deixassem escrever, a solução era a mais simples: mentir. Afinal, eu não podia ir a determinada celebração porque já ia a outra celebração ou – melhor ainda – estaria a trabalhar noutra celebração. Isto é: a exercer a responsabilidade de preparar celebrações.
Portanto, onde dantes dizia:
– Não posso, preciso de trabalhar.
Agora digo:
– Ah, caramba, tenho ensaio da marcha...
Ou mesmo:
– Ora, poça. Logo hoje, que tenho reunião da comissão do Império...
E não há quem me leve a mal. Valores mais altos se levantam.
É claro que eu não estou em marcha nenhuma nem faço parte de qualquer império: preciso mesmo é de trabalhar em silêncio. Mas toda a gente sabe disso. A evasiva é para demonstrar cuidado com o convidante, não para justificar seja o que for.
E assim volta tudo a ser divertido de novo.


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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”


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