O nosso estimado colaborador e distinto escritor, Joel Neto, deixou-nos mais este trabalho antes de partir para os Estados Unidos da América do Norte, mais concretamente para a Nova Inglaterra, onde apresentará os seus dois mais recentes livros, "Arquipélago" e "A Vida no Campo". Certo que receberá o maior apoio de todos os conterrâneos que, há muitos anos, na busca de melhores condições de vida, emigraram para o país do dólar. Dos livros citados, voltamos a reafirmar que constituem dois êxitos a juntar a tantos outros da autoria do cotado escritor açoriano que, repetimos, muito nos honra com a sua presença neste Portal Luso - Brasileiro Splish Splash.
REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO
Tenho o frasco aqui à minha frente. Rodo-o nas mãos, torno a tirar-lhe a tampa. Cheiro-o longamente, na sua acidez branda e doce. Afasto-o do nariz, finjo distrair-me com outra coisa qualquer e cheiro-o de novo, agora de repente, como se pudesse apanhá-lo de surpresa. Nada. A Catarina trouxe-o na segunda-feira da semana passada. Lembro-me de que era segunda-feira porque fui lavar as mãos, detectei o odor que se desprendia em volta e pensei: “Ah, uma semana que começa com uma memória. Vai ser uma semana boa.” E, no entanto, não identifiquei logo aquela memória. Nem mais tarde nessa manhã. Nem nenhuma das vezes que voltei a lavar as mãos até ir dormir, nem em nenhum momento dos dias seguintes, até que esvaziássemos o frasco. Nem sequer agora, que o tenho aqui à frente, com um restinho de sabão no fundo, guardado em desespero de causa. De onde vem este cheiro? De que recanto do meu passado? Acompanhou-me muito tempo ou apareceu na minha vida por acaso, momentaneamente, colando-se-me oportunista ao cérebro, como a semente de algo bom ou mau? Gostava de saber ao menos se é uma memória feliz ou infeliz, a que este cheiro carrega. Parece-me uma memória confortável. De uma casa-de-banho asseada e segura, talvez: um longo duche ao fim de uma viagem, o corpo moído, os confortos todos ali à minha disposição, a escova de dentes, um creme contra os efeitos do sol, um sabonete suave para as mãos. Ou se calhar do lavabo de um bom restaurante: uma refeição farta, um copo a mais, um cigarro (sim, parece-me uma memória antiga o suficiente para vir dos tempos em que se fumava à mesa), as mãos lavadas sem preocupações – e, de súbito, este cheiro adicionando-se, furtivo, às sensações que se acumulavam. De algum sítio será. Conheço este odor. E há uma memória colada a ele. E, quanto mais dificuldades encontro em discerni-la, mais quero fazê-lo – mais me sinto tentado a acreditar que há uma história associada a ela, e que talvez essa história seja radiante, ou desgostosa, mas em todo o caso eu devia recuperá-la. Podia escrever-se um romance em torno de um cheiro apenas – um cheiro que um homem sabe trazer uma memória, mas não consegue identificar qual. Podia escrever-se um romance sobre como um cheiro, um cheiro só, pode levar-nos de volta à vida toda, no encalço da sua pista – e se calhar alguém até já escreveu esse romance, mas não foi Proust, nem Zola, nem Virginia Woolf, profetas dos cheiros mas não necessariamente de um cheiro. Torno a agarrar no frasco. Leio: “Dove. Caring hand wash. Fine silk. For moisturised and protected hands.” Procuro os ingredientes: água, glicerina, ácido cítrico, uma série de outras coisas que não faço ideia o que sejam. Talvez se trate disso: um ingrediente. Mas nem tentando isolá-los na minha mente me lembro do lugar onde aquele cheiro me surpreendeu, e a ideia de a solução se esconder na linha do produto – poderia eu ter conhecido aquele odor num sabonete? – também não acrescenta qualquer lembrança. Está no meu subconsciente, o cheiro – bem à superfície, provavelmente, mas inacessível. Leva-me daqui para fora. Para fora desta freguesia remota que habito, desta ilha a meio do oceano. E, no entanto, não consigo lembrar-me aonde me leva. Imagino países que visitei, nas Américas, em África, na Ásia. Escrutino mulheres que conheci, namoradas, os casamentos. Enumero os empregos que tive. Percorro o ímpeto da juventude, a exuberância irresponsável dos trinta anos, a maturidade dos quarenta. Enumero os momentos em que estive no controlo da situação e depois os restantes, onde agora me parece mais provável esconder-se aquela memória. Mas não. É-me profundamente familiar, este cheiro, e parece-me confortável – é tudo quanto consigo dizer. Podia vir da infância, só que na infância os sabonetes eram Lux e Palmolive. Torno a fechar o frasco e fico a olhar para ele. Levanto-me e vou arrumá-lo no armário sob o lava-loiças. Ainda penso abri-lo uma última vez, mas deixo-o estar. Peço à Catarina que não o atire para o lixo e me ajude a avisar a Sónia de que não o atire para o lixo também. Algo me diz que devo deixar viver este mistério. Enquanto este mistério viver, muitas possibilidades viverão com ele. Inclusive as mais terríveis, e só pensar nisso já me provoca um arrepio de medo e de desejo.
REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO
Tenho o frasco aqui à minha frente. Rodo-o nas mãos, torno a tirar-lhe a tampa. Cheiro-o longamente, na sua acidez branda e doce. Afasto-o do nariz, finjo distrair-me com outra coisa qualquer e cheiro-o de novo, agora de repente, como se pudesse apanhá-lo de surpresa.
Nada.
A Catarina trouxe-o na segunda-feira da semana passada. Lembro-me de que era segunda-feira porque fui lavar as mãos, detectei o odor que se desprendia em volta e pensei: “Ah, uma semana que começa com uma memória. Vai ser uma semana boa.”
E, no entanto, não identifiquei logo aquela memória. Nem mais tarde nessa manhã. Nem nenhuma das vezes que voltei a lavar as mãos até ir dormir, nem em nenhum momento dos dias seguintes, até que esvaziássemos o frasco.
Nem sequer agora, que o tenho aqui à frente, com um restinho de sabão no fundo, guardado em desespero de causa.
De onde vem este cheiro? De que recanto do meu passado? Acompanhou-me muito tempo ou apareceu na minha vida por acaso, momentaneamente, colando-se-me oportunista ao cérebro, como a semente de algo bom ou mau?
Gostava de saber ao menos se é uma memória feliz ou infeliz, a que este cheiro carrega. Parece-me uma memória confortável. De uma casa-de-banho asseada e segura, talvez: um longo duche ao fim de uma viagem, o corpo moído, os confortos todos ali à minha disposição, a escova de dentes, um creme contra os efeitos do sol, um sabonete suave para as mãos. Ou se calhar do lavabo de um bom restaurante: uma refeição farta, um copo a mais, um cigarro (sim, parece-me uma memória antiga o suficiente para vir dos tempos em que se fumava à mesa), as mãos lavadas sem preocupações – e, de súbito, este cheiro adicionando-se, furtivo, às sensações que se acumulavam.
De algum sítio será. Conheço este odor. E há uma memória colada a ele. E, quanto mais dificuldades encontro em discerni-la, mais quero fazê-lo – mais me sinto tentado a acreditar que há uma história associada a ela, e que talvez essa história seja radiante, ou desgostosa, mas em todo o caso eu devia recuperá-la.
Podia escrever-se um romance em torno de um cheiro apenas – um cheiro que um homem sabe trazer uma memória, mas não consegue identificar qual. Podia escrever-se um romance sobre como um cheiro, um cheiro só, pode levar-nos de volta à vida toda, no encalço da sua pista – e se calhar alguém até já escreveu esse romance, mas não foi Proust, nem Zola, nem Virginia Woolf, profetas dos cheiros mas não necessariamente de um cheiro.
Torno a agarrar no frasco. Leio: “Dove. Caring hand wash. Fine silk. For moisturised and protected hands.” Procuro os ingredientes: água, glicerina, ácido cítrico, uma série de outras coisas que não faço ideia o que sejam.
Talvez se trate disso: um ingrediente. Mas nem tentando isolá-los na minha mente me lembro do lugar onde aquele cheiro me surpreendeu, e a ideia de a solução se esconder na linha do produto – poderia eu ter conhecido aquele odor num sabonete? – também não acrescenta qualquer lembrança.
Está no meu subconsciente, o cheiro – bem à superfície, provavelmente, mas inacessível. Leva-me daqui para fora. Para fora desta freguesia remota que habito, desta ilha a meio do oceano. E, no entanto, não consigo lembrar-me aonde me leva.
Imagino países que visitei, nas Américas, em África, na Ásia. Escrutino mulheres que conheci, namoradas, os casamentos. Enumero os empregos que tive. Percorro o ímpeto da juventude, a exuberância irresponsável dos trinta anos, a maturidade dos quarenta. Enumero os momentos em que estive no controlo da situação e depois os restantes, onde agora me parece mais provável esconder-se aquela memória.
Mas não. É-me profundamente familiar, este cheiro, e parece-me confortável – é tudo quanto consigo dizer. Podia vir da infância, só que na infância os sabonetes eram Lux e Palmolive.
Torno a fechar o frasco e fico a olhar para ele. Levanto-me e vou arrumá-lo no armário sob o lava-loiças.
Ainda penso abri-lo uma última vez, mas deixo-o estar. Peço à Catarina que não o atire para o lixo e me ajude a avisar a Sónia de que não o atire para o lixo também.
Algo me diz que devo deixar viver este mistério. Enquanto este mistério viver, muitas possibilidades viverão com ele. Inclusive as mais terríveis, e só pensar nisso já me provoca um arrepio de medo e de desejo.
http://www.facebook.com/neto.joel
http://www.joelneto.com/
* alguns destes textos são originalmente publicados no "Diário de Notícias"
Gostou do post ou tem sugestões?
✍️ Deixe aqui a sua opiniãoComentários
Enviar um comentário
🌟Copie um emoji e cole no comentário: Clique aqui para ver os emojis