Pedra no rim não é para qualquer um. Eu sei porque dei à luz uma. "Dar à
luz": nunca uma expressão foi tão apropriada. Passei dois dias no hospital em
maio e, de regresso à casa, não houve familiar ou amigo que não tivesse
disparado o clichê: "Isso só é comparável à dor de parto". Errado, irmãos. Com uma boa epidural, eu poderia dar à luz uma pedra do rim
todas as semanas. A minha admiração sincera só está com as antigas mulheres que
despachavam o serviço sem anestesia. Como foi possível, meu Deus? Como foi
possível que incontáveis mulheres se tenham submetido a uma dor lancinante só
para que a nossa espécie crescesse e se multiplicasse? De bom grado entregaria a minha pedra, hoje em frasco de vidro, para que
sobre ela se edificasse um monumento às parideiras desconhecidas. Se dar à luz
dependesse dos homens, a história da civilização não teria passado do
Paleolítico. Estou curado. Do rim. Não estou curado do resto. Acabo de fazer 37 anos e,
nos últimos meses, uma sucessão de minicatástrofes mostra que a idade física
está a aproximar-se da mental. Biologicamente, são 37; mas é preciso inverter a
ordem dos números para ter um retrato do artista quando "jovem". Tudo começou com um almoço de domingo e um dente que não deveria estar no
prato. De quem era aquele dente, perguntei, pronto para fazer piada com a
cozinheira desdentada. Os restantes comensais olharam para mim horrorizados e uma das crianças,
chorando de medo, apontou para um buraco na minha boca. Mas não são apenas os dentes que quebram e me abandonam. O cabelo também está
a fazer as malas. Se fosse um dramaturgo, já teria escrito uma peça a respeito.
Imagino a cena: o cabelo, deitado na cama e ligado a uma máquina, murmurando
para mim. "Por favor, João, eu sei que sou importante na tua vida. Mas tens que
me deixar ir." E eu, agarrando na mão do meu amigo, implorando para que ele fique mais um
pouco. "Só até os 40, rapaz, só até os 40!" Não há 40 para ninguém. Pelo menos, sem alterar hábitos de vida. Entreguei os
testes médicos ao especialista. Ele olhou para os testes. Depois para mim.
Depois para os testes. Depois para mim. "Tem a certeza de que esses testes são
seus?", perguntou o desgraçado. Sentença: anos de excessos, anos de inatividade --e a fatura chegou. É
preciso comer melhor e, sobretudo, fazer exercício físico diário. Obedeci. A partir de agora, usarei duas gotas de uísque Laphroaig apenas como
perfume. E, sobre o exercício, perguntei na academia se existia um desporto
leve, só para início de conversa. "Hidroginástica", disse-me a moça, com um
inconfundível esgar de piedade. Experimentei. Gostei. Tenho uma piscina enorme e mais de 30 mulheres só para
mim. Todas elas poderiam ser minhas avós, mas isso nunca foi um problema para
quem sempre apreciou mulheres maduras. O ambiente é descontraído e graças a elas já conheço as melhores lojas
ortopédicas de Lisboa, que me salvaram recentemente depois de mais um lamentável
acidente doméstico. Aconteceu minutos depois de despertar, quando me entreguei a tarefas radicais
que não tenciono repetir tão cedo --no caso, subir a persiana do quarto. Um
estalido nas costas transformou-me de imediato em estátua e foram precisas doses
equinas de analgésicos, anti-inflamatórios e relaxantes musculares para que
voltasse a caminhar sem colete cervical. Sou um homem novo, disposto a cuidar melhor da minha carcaça. E,
hipocondríaco confesso, tentei saber tudo sobre a história da família para fazer
exames preventivos. Foi assim que a palavra "colonoscopia" passou a fazer parte
do meu dicionário. Avancei para ela sem medo, embora gostasse de lavrar aqui o meu protesto: por
que motivo as batas hospitalares para doentes continuam a tapar tudo na frente e
a deixar generosas frestas na retaguarda? Não que isso seja motivo para embaraços, claro, exceto se formos reconhecidos
por alguns pacientes que também esperam a sua vez em traje igual. "Gosto muito
de o ler", disse-me um. "É mais magro ao vivo que na TV", disse-me outra. Agradeci, encostando-me ainda mais à parede. E quando finalmente chamaram
pelo meu nome, fiz uma vênia de maestro e depois fui recuando, recuando,
recuando, até desaparecer pela porta do bloco. Nunca devemos virar as costas aos nossos fãs. João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política.
http://www1.folha.uol.com.br 11/06/2013
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Pedra no rim não é para qualquer um. Eu sei porque dei à luz uma. "Dar à luz": nunca uma expressão foi tão apropriada. Passei dois dias no hospital em maio e, de regresso à casa, não houve familiar ou amigo que não tivesse disparado o clichê: "Isso só é comparável à dor de parto".
Errado, irmãos. Com uma boa epidural, eu poderia dar à luz uma pedra do rim todas as semanas. A minha admiração sincera só está com as antigas mulheres que despachavam o serviço sem anestesia. Como foi possível, meu Deus? Como foi possível que incontáveis mulheres se tenham submetido a uma dor lancinante só para que a nossa espécie crescesse e se multiplicasse?
De bom grado entregaria a minha pedra, hoje em frasco de vidro, para que sobre ela se edificasse um monumento às parideiras desconhecidas. Se dar à luz dependesse dos homens, a história da civilização não teria passado do Paleolítico.
Estou curado. Do rim. Não estou curado do resto. Acabo de fazer 37 anos e, nos últimos meses, uma sucessão de minicatástrofes mostra que a idade física está a aproximar-se da mental. Biologicamente, são 37; mas é preciso inverter a ordem dos números para ter um retrato do artista quando "jovem".
Tudo começou com um almoço de domingo e um dente que não deveria estar no prato. De quem era aquele dente, perguntei, pronto para fazer piada com a cozinheira desdentada.
Os restantes comensais olharam para mim horrorizados e uma das crianças, chorando de medo, apontou para um buraco na minha boca.
Mas não são apenas os dentes que quebram e me abandonam. O cabelo também está a fazer as malas. Se fosse um dramaturgo, já teria escrito uma peça a respeito. Imagino a cena: o cabelo, deitado na cama e ligado a uma máquina, murmurando para mim. "Por favor, João, eu sei que sou importante na tua vida. Mas tens que me deixar ir."
E eu, agarrando na mão do meu amigo, implorando para que ele fique mais um pouco. "Só até os 40, rapaz, só até os 40!"
Não há 40 para ninguém. Pelo menos, sem alterar hábitos de vida. Entreguei os testes médicos ao especialista. Ele olhou para os testes. Depois para mim. Depois para os testes. Depois para mim. "Tem a certeza de que esses testes são seus?", perguntou o desgraçado.
Sentença: anos de excessos, anos de inatividade --e a fatura chegou. É preciso comer melhor e, sobretudo, fazer exercício físico diário.
Obedeci. A partir de agora, usarei duas gotas de uísque Laphroaig apenas como perfume. E, sobre o exercício, perguntei na academia se existia um desporto leve, só para início de conversa. "Hidroginástica", disse-me a moça, com um inconfundível esgar de piedade.
Experimentei. Gostei. Tenho uma piscina enorme e mais de 30 mulheres só para mim. Todas elas poderiam ser minhas avós, mas isso nunca foi um problema para quem sempre apreciou mulheres maduras.
O ambiente é descontraído e graças a elas já conheço as melhores lojas ortopédicas de Lisboa, que me salvaram recentemente depois de mais um lamentável acidente doméstico.
Aconteceu minutos depois de despertar, quando me entreguei a tarefas radicais que não tenciono repetir tão cedo --no caso, subir a persiana do quarto. Um estalido nas costas transformou-me de imediato em estátua e foram precisas doses equinas de analgésicos, anti-inflamatórios e relaxantes musculares para que voltasse a caminhar sem colete cervical.
Sou um homem novo, disposto a cuidar melhor da minha carcaça. E, hipocondríaco confesso, tentei saber tudo sobre a história da família para fazer exames preventivos. Foi assim que a palavra "colonoscopia" passou a fazer parte do meu dicionário.
Avancei para ela sem medo, embora gostasse de lavrar aqui o meu protesto: por que motivo as batas hospitalares para doentes continuam a tapar tudo na frente e a deixar generosas frestas na retaguarda?
Não que isso seja motivo para embaraços, claro, exceto se formos reconhecidos por alguns pacientes que também esperam a sua vez em traje igual. "Gosto muito de o ler", disse-me um. "É mais magro ao vivo que na TV", disse-me outra.
Agradeci, encostando-me ainda mais à parede. E quando finalmente chamaram pelo meu nome, fiz uma vênia de maestro e depois fui recuando, recuando, recuando, até desaparecer pela porta do bloco.
Nunca devemos virar as costas aos nossos fãs.
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política.
http://www1.folha.uol.com.br
11/06/2013
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