Corpo e alma do Oscar de 2018

DO TEXTO:

Por: João Eduardo Hidalgo*

A versão de número 90 do Oscar, em 2018, ocorreu sem os enganos do ano anterior e premiou os candidatos esperados. O melhor filme e diretor para A forma da Água era quase uma certeza. Gary Oldman como Churchill em O destino de uma nação fez um trabalho excepcional, competente também foi a atuação de Frances McDormand em Três anúncios para um crime, mas neste caso ela teve um elenco de apoio que contribuiu muito para o resultado.

O interessante da premiação é contemplar as produções que estão sendo levadas a cabo pelo mundo, na premiação de melhor filme estrangeiro. Os cinco concorrentes eram bastante diferentes,- na sua realização e repercussão. O ganhador da categoria Um mulher fantástica, representando o prolífico cinema chileno, dirigido por Sebastián Lelo e estrelado pela transexual Daniela Vega era, na minha opinião, um dos mais fracos.  O conflito de um casal, onde um divorciado escolhe viver seu novo amor com um transexual, tem um roteiro banal, estereotipado e previsível em seu desfecho. Sem falar que tirando a trans Mariana, que é um personagem bem construído, os outros personagens são tão caricatos e maldosos que é difícil acreditar na história. O Chile possui uma população bastante instruída, cosmopolita e mais evoluída do que aparece na obra. E na história do cinema já temos filmes como Traídos pelo desejo dirigido por Neil Jordan, em 1992, um imenso sucesso, que tem um casal central parecido, nada de novo 25 anos depois.

O melhor filme da categoria era Corpo e Alma, da Hungria. Dirigido pela cineasta Ildikó Enyedi, conta a história de Mária (Alexandra Borbély), inspetora de saúde e Endre (Géza Morcsányi) administrador de um matadouro de bovinos em Budapeste. O enredo começa de uma maneira banal, com um cenário de um campo nevado, onde um cervo macho pasta e começa uma tentativa de acercar-se a uma fêmea. Aparentemente sem nenhuma ligação com as cenas seguintes, da vida cotidiana em um abatedouro, onde os animais são enfileirados para serem sacrificados, cenas tensas para a plateia, mas que não chegam a abusar da violência do ato em si, que fica explicitado, mas não é mostrado. Endre leva a sua vida normalmente e costuma comer com um colega Jeno, que fala de como se deve tratar com firmeza as mulheres, mas é submisso com a sua, que o encarrega diariamente de fazer compras e buscar a filha na escola. Num determinado dia nota que o matadouro tem uma nova inspetora de saúde, e tenta uma aproximação brusca e ouve dela que ele escolheu purê de batata, pois com um braço paralisado é mais fácil comer este prato. Devemos lembrar que animais doentes ou com má formação são rejeitados pelas fêmeas na natureza. Em contraste com o sangue e a cor dos animais do frigorífico, a comida é branca ou amarela e não parece ter nenhum atrativo para os personagens, que a comem sem nenhum interesse.

O roteiro é tão imprevisível e inovador que não pode ser adivinhado, nem com muitas tentativas. As cenas com o casal de cervos continuam, sem ligação com o resto do filme, e vão causando um estranhamento pela falta de continuidade, mas com o roubo de um produto químico do abatedouro, um estimulante sexual, uma psicóloga é contratada para investigar os funcionários e acaba descobrindo que Mária e Endre descrevem o mesmo sonho. Eles são cervos que procuram comida na floresta, e sonham todas as noites a mesma coisa, como uma seqüência. A psicóloga acha que os dois estão pregando uma peça nela, mas acaba colocando em contado mais íntimo os dois personagens, que tentam entender o que está acontecendo com eles. A princípio testam ficar no mesmo quarto, mas não conseguem dormir, e muito menos sonhar. Mária mostra uma inabilidade social acentuada, ela não tem amigos, tem dificuldade em se aproximar das pessoas e é maníaca por limpeza. Endre já foi casado e fora o braço paralisado é um homem social, que inclusive mantêm uma modesta vida sexual. Interessada em ser mais feminina Mária pergunta para a descolada faxineira Zsóka (Ítala Bekes), como ser mais feminina e recebe dicas de como se vestir e uma aula de como andar, -uma cena impagável com esta experiente e nonagenária atriz, que com esta sequência minúscula chama atenção para a sua interpretação no filme. Endre e Mária começam um jogo de permitir e não permitir, aproximar-se e distanciar-se, que acaba levando Mária a um ato extremo, a tentativa de suicídio, que se aproxima do sacrifício dos animais no abatedouro. Neste panorama tudo é possível, mas o aspecto poético acaba predominando. De longe era o melhor filme entre os indicados, mas também é um filme difícil e que só se revela para quem se esforça em enfrentá-lo. Como curiosidade lembro que o tema central de Corpo e Alma lembra um livro que foi campeão de vendas no final da década de 1980, O dicionário Kazar, do escritor Iugoslavo (na época) Milorad Pávitch (1929-2009). Ele conta a história do povo Kazar, que tem a habilidade de viver no sonho dos outros e que pode, depois da morte de seu corpo físico, viver neles para sempre. O livro baseia-se em lendas que circulam na Europa Oriental e que parecem ter deixado pegadas neste filme. A Hungria ganhou recentemente o Óscar de melhor filme estrangeiro em 2016, com O filho de Saul e, acredito que por isto, afastou a possibilidade desta obra ser considerada como merecia.

O representante russo Loveless: sem amor era outro forte candidato. Nele um casal jovem enfrenta o final da sua relação, já envolvidos com novos parceiros; a mulher tem um namorado mais velho e rico e o homem uma namorada que já está grávida. Eles só tem diálogos para falar sobre a venda do apartamento onde vivem e da divisão do dinheiro, o filho será colocado num abrigo, já que não há lugar para ele na vida de nenhum dos dois. Vejo o filme como uma dura crítica a inabilidade de uma geração, que de repente teve acesso aos bens de consumo, comuns no ocidente, e agora vivem ensimesmados pensando em seus celulares, depilações, jantares românticos, compras e esquecem os valores fundamentais. O filho, que é ignorado pelos dois, inclusive quando estão falando aos berros do destino miserável que vão dar para ele, desaparece e quebra esta sucessão de superficialidade e confronta o casal com sua responsabilidade de pais, de um desaparecido – um pesadelo merecido. Os dois personagens, o marido e a mulher são tão fúteis que o espectador desenvolve uma rejeição monumental para com os dois e se solidariza com o filho, que aparece em duas cenas que não duram mais de trinta segundos cada uma, mas que é o personagem dominante da narrativa. Um filme triste, duro, mas bastante representativo da sociedade contemporânea da Rússia.

O Insulto, filme libanês tem como enredo trivial-variado sobre os enfrentamentos étnicos no oriente médio. Um libanês católico entra em conflito com um palestino por causa de uma calha que joga a água diretamente na rua, encima dos transeuntes. O palestino é engenheiro e tenta concertar a calha, mas o libanês a destrói a marteladas e é chamado de idiota pelo primeiro. O filme mostra o desenrolar surreal que um episódio insignificante tem, quando envolve povos que tem tantas tragédias na história, dos dois lados. Mas mostra o ódio pelo ódio e uma falsa aceitação no final, que soa hipócrita. Não acrescenta nada na longa lista de filmes que tratam dos conflitos na região, é convencional demais dentro da tragédia cotidiana que quer representar.

Finalmente The Square: a arte da discórdia, representante da Suécia, trata de um assunto para iniciados, o que é arte dentro de nosso período contemporâneo. O filme mostra bem o tipo de preocupação que uma sociedade desenvolvida pode ter, que nem de longe sensibiliza a maioria dos habitantes do planeta. Questões como aceitar Jeff Koons e Demian Hirst como artistas ou prestidigitadores, e considerar a cama que um artista tira de sua casa e coloca no museu e transforma em obra de arte, tocam aos interessados em um ramo muito específico da cultura. O filme é muito crítico e ri de si mesmo, mas não propõe nada, e nem deveria já que um movimento artístico deve ser avaliado depois de terminado e com distanciamento. Quem se lembra do artístico e meticuloso filme La Sapienza de 2014, dirigido por Eugène Gree, que também trata de um período da arte, o barroco, utilizando seus preceitos no roteiro, como faz The Square? Os dois são candidatos a filmes Cult, que circulam dentro de um grupo muito restrito.

Em Hollywood os grandes diretores continuam a realizar filmes de alto orçamento e com cenários, figurinos, elencos gigantescos e muito bem preparados, e que são boa opção de entretenimento. Mas é bom que existam filmes pontuais, com baixo orçamento, boas idéias e elenco exemplar, como Corpo e alma e Loveless, que inovam no roteiro, na narrativa, na construção de personagens e na escolha de temas, que muito eventualmente vão interessar ao rol de assuntos da grande indústria cinematográfica.

*João Eduardo Hidalgo é Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pela Universidad Complutense de Madrid, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Unesp, Câmpus de Bauru.

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