Não dês sopa inteira
ao menino, que ele pode-se afogar
Terra Chã, 28 de
Abril
Esta semana apercebi-me de que o smiley deixou de ser fixe. Quer dizer: talvez o smiley nunca tenha sido fixe. Mas gozava
de uma certa indulgência, parece-me – de uma ausência, digamos, de peritagem
moral. Pelo menos, ainda não tinha caído sobre ele a polícia da estética. Caiu
agora e vai fazer dele arma de arremesso.
Eu próprio resisti ao smiley.
Escrevia um e-mail ou uma mensagem e
não só punha as maiúsculas, as vírgulas e os pontos nos seus lugares, como me
negava ostensivamente os smileys.
Parecia-me um contra-senso que um escritor tivesse de recorrer a sinais
gráficos para acrescentar tom às palavras.
Vim a decidir que o problema estava na recepção. Talvez nos
livros as pessoas com quem eu falava ainda estivessem disponíveis para
perscrutar a entoação de uma frase. Numa mensagem de circunstância, ficavam
desconfiadas se não houvesse algures um smiley
a amaciar a atmosfera.
O que depois, aliás, ainda exigia mais não sei quantas
mensagens só para desfazer o equívoco, trabalheira sobre as demais inútil.
Resultado: passei a usar smileys.
Não muitos. Não com sacrifício da pontuação, da integridade do léxico ou das
conjugações verbais. Mas os suficientes para me fazer entender sem ter de
passar o resto da tarde a justificar-me: um parêntesis para um sorriso, dois
para uma gaitada e uma barra para um certo desconcerto.
Anteontem fui contactado por um grupo de jovens lisboetas,
criativos de diferentes matérias e razoável sucesso, e que queriam umas dicas
sobre férias nas ilhas. Respondi com uma primeira dica e um smiley. Devolveram cheios de encómios e
deferências, mas sem smileys. Enviei
nova dica e novo smiley. Mandaram
mais encómios, mais deferências e agora até um monte de pontuação enfática –
exclamações, reticências, combinações de ambas –, mas nenhum smiley.
Fiquei logo desconfiado. Ademais, isso parecia vir
acontecendo há dias com diferentes interlocutores, embora todos eles enquadráveis
num certo padrão de – chamemos-lhe assim – jovens urbanos (ou, mais
simplesmente, fixes).
Fui conferir as mensagens de telemóvel: nenhum fixe, nos
últimos dias, usava smileys. Fui ao
Facebook e aos e-mails, ao WhatsApp e
até àquela coisa nova – Slack, creio – que o Pedro me pediu para instalar:
havia meia dúzia de smileys, sim, mas
no espaço onde outrora estariam dúzia e meia.
Ontem, como em algum momento todas as semanas, fui ouvir o Governo Sombra, da TSF. Pois lá estava
Ricardo Araújo Pereira desqualificando o smiley
– destacando-o como o novo e definitivo sinal do bimbo do século XXI.
Fiz as contas: a utilização de smileys entre a gente fixe devia ter caído uns bons cinquenta por
cento. Houvesse o mandamento sido pronunciado na chinfrineira de um programa
matinal, daqueles para apaziguar a angústia do trânsito com doses maciças de
estímulos nervosos e pontapés-na-sinapse, e teria caído oitenta.
Fosse como fosse, percebi, o smiley estava out. Estava
out e não tardava que um tipo capaz
de usar um smiley deixasse de
constituir um simples bimbo para se transformar num homicida do bom-gosto, sem
direito não só a beber do cálice e a comer do pão, mas a sentar-se à mesa
connosco.
Nem cheguei a ter vontade de enviar um monte de mensagens
com smileys e emoticons variados – bolinhas amarelas, corações de várias cores,
flutes de champanhe a tilintar. Escasseou-me o rancor. Ri-me um pouco: até não
era má notícia que o novo escrutínio incidisse sobre a expressão escrita –
podia ser até que acabássemos por aprender a usar, sei lá, as preposições.
Nem que fosse como dano colateral.
De resto, voltaram a parecer-me cómicas as coisas com que
perdemos tempo, na vertigem de construir a personagem. Mas eu tenho sorte:
escrevo à janela da minha biblioteca de criptoméria, com o castanheiro exibindo
os primeiros rebentos da Primavera, os melros retomando os seus rituais de
acasalamento e, ao fundo, o cavalo do Galão catando a erva entre a labaça.
É uma luta desigual.
Terra Chã, 29 de
Abril
Cruzo-me com o vigésimo relato de um conhecido que foi de
avião a Lisboa só para ver o Sporting-Benfica. Conta-me, em triunfo, que ficou
na bancada x, mesmo ao lado da atracção y, na posição z em relação à Juve Leo.
– Só foi pena aquele livre do Lindelof.
Recapitulo os outros dezanove relatos: em dois terços deles
o lugar ocupado no estádio fora explicado com recurso à posição relativa da
Juve Leo. Era sempre como se a Juve Leo estivesse suficientemente perto para
causar inveja ao circunstante e suficientemente longe para, da próxima, o lugar
ainda poder melhorar.
Isto foi tudo gente do Sporting. Com os relatos dos
benfiquistas, rememorei, o nome que vinha à baila costumava ser o dos No Name
Boys. Com os dos portistas, o dos Super Dragões.
Mas podiam ser os de outros grupos. A verdade é que a imbecilidade
das claques – a sua guturalidade, a sua acefalia – exercia um fascínio sobre os
rapazes, os homens de meia idade e até os velhos da minha terra.
Exercia e exerce.
E eu imagino que seja assim nas outras terras também. Todos
gostaríamos de ter sido um gangster,
talvez – mesmo um desses de trazer por casa, com os das claques. Mas nenhum
combate à violência, no futebol e na sociedade, pode ser levado a cabo, hoje,
sem se perceber isto.
REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO
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