Sai biografia que Caetano Veloso achou mal escrita

DO TEXTO:
Caetano Veloso em sua casa, em 1982
IVAN FINOTTI
DE SÃO PAULO

TRECHO DA BIOGRAFIA

"Dizem que na vida nada é por acaso. O fato é que a união, ou reunião, daquele grupo em torno de um mesmo ideal daria muito o que falar. Por um capricho do destino, Roberto Santana e Gilberto Gil andavam pela rua Chile quando avistaram Caetano, caminhando pelo sentido oposto. Naquele instante casual, sem forçar nada, finalmente se conheceram. Se para falar com Deus tem que ficar a sós, para conhecer aquele negro danado de bom foi preciso a ajuda de um 'cabra' chamado Roberto Santana.
Em 1963, foi ele o responsável por esse encontro."

Era uma vez uma biografia de um artista bastante popular. Era uma vez um artista bastante popular que havia estudado filosofia, era rigorosíssimo com o vernáculo português e respirava o ar rarefeito da alta intelectualidade.

Quando o artista leu sua biografia ficou "tristíssimo", conta Paula Lavigne, a empresária do artista bastante popular. "Baixo nível literário, palavras de Caetano".

"Ainda mais Caetano, com esse negócio de escrita. O cara mais chato do mundo, tem ataque por causa de crase, imagina um negócio mal escrito", diz. 
"Ele não quer falar porque está constrangido. Não quer fazer propaganda contra."

Vejamos por que o mais doce bárbaro dos trópicos não gostou de "Caetano, Uma Biografia: A Vida de Caetano Veloso, o Mais Doce Bárbaro dos Trópicos", de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, que sai em maio.

No trecho reproduzido no alto desta página, há quatro destaques em negrito. "Dizem que na vida é por acaso", começa o texto. O livro está repleto de ditados populares como esse, muitas vezes usadas para dirimir conflitos. "Em time que está ganhando não se mexe", "pedido de amigo não se nega" e, dito isso, as dúvidas se resolvem e a narrativa segue em frente.

Dois: "Por um capricho do destino", Gil e e Caetano se encontraram. O uso de um chavão como esse (comum no resto do livro) não serve para nada. Afinal, no próprio parágrafo eles afirmam que o encontro não foi capricho do destino, e sim responsabilidade de Roberto Santana.

Três: "Se para falar com Deus tem que ficar a sós" é uma brincadeira com a música de Gilberto Gil de 1980: "Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que ficar a sós". Uma brincadeira inocente, talvez, mas não se passam muitas páginas sem que ela volte, volte e volte, a ponto de irritar.

A mais infame é a que descreve o militar que vigiava Caetano na prisão em 1969: "Por trás das lentes daquele Ray-Ban não tinha um cara legal", citando o hit "Óculos" (1984), dos Paralamas do Sucesso.

Finalmente, é possível se ressentir com a informalidade excessiva do texto. No trecho acima, Gil é descrito como "negro danado de bom" (calma, Facebook, o problema não é a palavra "negro", é a expressão "danado de bom").

Em outro ponto, os autores apresentam o compositor e jornalista Nelson Motta. Na linha seguinte, ele vira Nelsinho, e Nelsinho segue até o fim do livro. Cabe aqui uma curiosidade: na província carioca, Motta e muitos outros são conhecidos pelo diminutivo, mas que culpa tem o resto do Brasil disso?

NARCISO

Agora, segue um exemplo do que o artista considera um texto compatível. Ele mesmo o escreveu, no livro "Verdade Tropical", de 1997.

"Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa, saem estas palavras que, embora se saibam de fato despretensiosas, são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre os grupos humanos, os indivíduos e as formas artísticas, e também das transações comerciais e das forças políticas, em suma, sobre o gosto da vida neste final de século."

Isso é respirar o ar das alturas.

Caetano tentou levar a biografia de Drummond e Nolasco a esse patamar. Animado com a pesquisa empreendida pela dupla –excelente, por sinal, com mais de cem entrevistados, incluindo toda a sua família, além de três viagens à sua terra natal–, ele pediu ao poeta Eucanaã Ferraz que ajudasse os rapazes a melhorar o texto.

"Eles foram legais e gentis. Me deram carta branca", diz Eucanaã. "Mas o texto era muito ingênuo para tratar de personagem tão desafiador. Não era possível consertar, era preciso refazer. E não tenho interesse de ser biógrafo de ninguém. Muito menos de Caetano, de quem sou amigo."

Drummond, um funcionário da Funarte formado em administração de empresas, autor de sambas da Imperatriz Leopoldinense e também poeta, se defende, e bem: "Não escrevemos como ele. Seriam necessárias 3.000 páginas. Lembrando de uma de suas canções, Narciso acha feio o que não é espelho".

LIVROS

No início dos anos 2000, a Objetiva comprou os direitos da obra, mas pediu uma autorização de Caetano para o lançamento. Como não a obteve, desistiu do projeto. Foi um excesso de zelo que engavetou a biografia por 11 anos.

Nova editora foi encontrada e o livro foi reescrito. "Nos mandaram o texto de novo, nada tinha melhorado", diz Lavigne. Além de Caetano, jornalistas ávidos por imparcialidade se arrepiarão devido à reverente frase em negrito na última página: "Vida longa e próspera a Caetano Veloso!".

Entretanto, como o mundo não está povoado apenas por Caetanos, Eucanaãs e jornalistas, deve ser um sucesso, pois o livro cumpre o que promete (o lançamento em SP será no início de maio na Cultura do Conjunto Nacional, em data a confirmar).

Senão por isso, por outra razão simples, que Caetano anota em "Verdade Tropical": "(...) atendo-me à constatação de que os livros simplesmente devem ser escritos para quem gosta de ler livros". 

CAETANO, UMA BIOGRAFIA  
AUTORES Marcio Nolasco e Carlos Eduardo Drummond
EDITORA Selo Seoman, do Grupo Editorial Pensamento
QUANTO R$ 59,90 (544 págs.)

In:http://www1.folha.uol.com.br
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