Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:



REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


O José, coitado, leva sempre lenha

Terra Chã, 20 de Abril
Por esta altura já devíamos encontrar-nos de regresso a Lisboa. Está esgotado o prazo que definimos no momento da mudança para a ilha – quatro ou cinco anos, prometemos um a outro –, e o mínimo que nos cabia estar a fazer, neste momento, eram planos para voltar.
Falamos nisso, às vezes. Metade da família vive na cidade – na verdade, a metade maior –, e nunca foi suposto passarmos aqui o resto da vida. Mas, de cada vez que levantamos o assunto, é como se o levantássemos apenas para nos lembrarmos de que existe.
Algo acaba sempre por distrair-nos. E, se chegamos ao ponto de nos pormos a enumerar razões para vivermos num sítio ou no outro, mais cedo ou mais tarde aborrecemo-nos da conversa, na suspeita – creio que é isso – de que o dilema deixou de estar no domínio da racionalidade.
Isto sou eu a falar. A Catarina falará à sua própria maneira. Mas, quando olho para trás, vejo que viemos em busca de duas ou três coisas bem concretas: mais tempo para escrever e trabalhar, embalagem telúrica em vez de consumismo desenfreado e menos dependência de um determinado nível de facturação. Em suma, e como já escrevi noutro lado, uma vida mais serena, mais barata e mais livre.
Afinal, continua a faltar-nos tempo, também aqui cultivamos os nossos consumismos (embora de outra natureza) e a necessidade de ganhar dinheiro está em todo o lado. Só que, mal começamos a ponderar nas aritméticas, chegamos sempre à conclusão de que aquilo de que sentimos falta na vida lisboeta talvez ainda não tenha superado aquilo de que sentiríamos falta na vida da ilha.
Sabemos bem do que temos saudades em Lisboa. Das livrarias. Dos passeios por Alfama, aos sábados de manhã. Das noites de ócio nas Amoreiras, com cinema e pipocas. De uma tarde de modorra na Aroeira (isto no meu caso), jogando golfe com a malta de sempre.
Temos saudades da pastelaria. De sardinha assada. Do ura braseado do Sushirio e do buffet do Rosa da Rua. Do assobio dos amoladores de facas numa tarde de sol – daquilo de que ainda desfrutamos quando visitamos a cidade (e que apesar de tudo acontece com frequência), mas de que não podemos usufruir sempre que nos apetece.
De poder fazer uma coisa e decidir ficar em casa, como formularia Pessoa se tivesse podido viver uma vida doméstica também. Das pessoas – a família e os amigos. Do calor.
Mas a verdade é que, daqui, teríamos saudades de mais coisas. De passear com os cães entre as criptomérias. Das noites à lareira, mesmo quando é preciso fingir que continua frio. Deste jardim onde depositámos tantos recursos e tempo. Do cheiro da alcatra a fazer de véspera, das sopas do Espírito Santo, das amêndoas a retalho do Basílio Simões.
Sentiríamos saudades do silêncio de um feriado. Das retrosarias de Angra.  De andar de carro ao redor da ilha, ao sábado à tarde, a ouvir o Monk e o Charlie Parker. De dar uma corridinha pela Canada do Ti Bento, descendo a Canada dos Folhados, atravessando a Terra do Pão e voltando pela Canada de Belém – de dar um mergulho na Silveira às nove da manhã e de ir comprar mel à Fajã, plantios à Praça Velha, figos aos Biscoitos, filhoses às velhinhas da Ribeirinha na noite de São João.
Sentiríamos saudades da piza do Q.B. que vamos comer ao Negrito, acompanhada de vinho bom, na noite em que fazemos anos de casados. Sentiríamos saudades de ouvir o mar, e de cheirá-lo, e de ver o José dos Cestos a entrançar vime, e de ir ao Nildo Neves comprar ferragens, e dos restantes amigos, e da outra parte da família.
Sentiríamos saudades de tantas coisas que, na verdade, não seriam saudades de nada em concreto. Porque já não é do âmbito da razão o que nos prende a esta terra de natureza exultante, mas das emoções. Porque é de uma atmosfera que sentiríamos saudades, de um cheiro – esse cheiro a leite morno, erva húmida e bosta de vaca, como também já escrevi.
E o que me preocupa é isso. Fui um homem dividido, nestes anos. Vivia num lugar com a consciência de pertencer a outro também, e nessa ambivalência – nessa dualidade, ia a escrever – se funda hoje tanto o meu trabalho (o nosso trabalho) como a minha (e a nossa) visão do mundo. Será penoso perder essa ambivalência, essa dualidade, e não é certo que saiba substituí-la por outra coisa, se é que nos cabe escolhê-las.
Resta-me a esperança de que o momento se imponha com naturalidade. Há um conforto em acreditar nisso. Ainda há dias ouvi de mais um casal que viveu no campo sete ou oito anos e agora voltou à cidade, dando o ciclo por concluído – sem dramas. É capaz de haver um tempo para também nós darmos o nosso por concluído, seja daqui a dois, seja daqui a vinte anos. E, para mais, eu sei que é sempre nesta fase do ano, em que já faz sol no resto do país e aqui ainda chove, que tais congeminações nos assolam.
Mas olho para Lisboa, para o modo como vai escorraçando um a um os lisboetas – os jovens liberais, os pequeno-burgueses, a classe média em geral, gente como nós –, e pergunto-me: teremos mesmo a oportunidade de regressar, se nalguma altura chegar o dia? Quererá Lisboa alguma coisa connosco, ainda? O que restará da cidade de que fizemos parte se algum dia se nos impuser a urgência de fazer parte dela outra vez?


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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