O desfado de uma moura

DO TEXTO:


A fadista que mais vende em Portugal tem disco novo. Aos 36 anos, Ana Moura sente-se mais perto do fado do que nunca, mas avança por novos caminhos e sonoridades. O Expresso entrevistou-a na véspera de partir para a Austrália e acompanhou-a no dia do último concerto de “Desfado”, que encheu o Casino Lisboa. Foi também a primeira noite de “Moura”

  O único problema de chegar ao topo da montanha é que a partir daí é sempre a descer. Ou talvez não. Ana Moura conseguiu o que muitos julgavam impossível e transformou um disco de fado num fenómeno de sucesso, acumulando vendas, prémios e concertos em todo o mundo. Mais alto era impossível. Agora dá o passo seguinte. O novo trabalho chama-se “Moura”. É um disco de alegria e felicidade, diz. É o trabalho de uma fadista em paz consigo e com o seu mundo. E Ana Moura já pensa no futuro: não estará longe um disco de fados tradicionais com José Mário Branco.

 Quantos dias é que passa em casa?
 Poucos. Sinto isso, e isso sente-se na minha casa. Agora tenho dois gatos que me fazem sentir em casa quando regresso. Deixei de me queixar e já não digo: “Ai, este colchão... ai, esta almofada”... Prefiro valorizar a vida que levo e criar outro tipo de rotinas, que são próprias da estrada. Quando chego a algum lado procuro sempre aquelas lojas de conveniência para comprar o pequeno-almoço. Há músicos que acordam mais cedo e vão ao pequeno-almoço. Eu não. Preciso de dormir.

 Cria um lado doméstico num lugar que nada tem de doméstico?
 Nem que seja pelo facto de lavar e estender a roupa no meu quarto de hotel.

 Logo na primeira música, que é a que tem a letra da Manuela de Freitas, a dada altura diz “eu vou à procura de mim e não encontro ninguém”. Nesta vertigem da digressão onde é que vai à procura de si?
 É muito complicado. Estou a descobrir isso. Houve uma altura em que o fazia quando estava sozinha. Chegava a casa e dizia: “Eh, pá! Onde está a minha vida?” Nesses momentos sentia-me ansiosa porque não tinha aquela vida que os outros achavam que devia ter. Hoje, dispenso a ansiedade. Aceitei que tenho uma vida diferente e que tudo se mistura.


  Dentro dessa vida, que passa pelo facto de apostar tudo na carreira, onde fica a vontade de ter uma família?
Gostava muito de um dia ser mãe. É um bocadinho difícil com a vida que tenho. Quando for mãe não haverá esta loucura de viagens, embora gostasse de continuar a cantar. Mas a verdade é que também não é fácil encontrar uma pessoa que perceba este modo de vida.

 Nunca encontrou?
 Não.

 É uma vida solitária...
 É. Já era solitária antes de cantar fado. Sempre fui. Tenho poucas amigas e as que tenho ainda são as mesmas. Por um lado, tenho vontade de estar com pessoas, mas até tomar essa decisão de estar com outros custa-me um bocadinho... Sou alegre e gosto de conviver. Custa-me é dar o passo.

 Sair da própria caixinha?
 Sim. É isso.

 O que vê quando olha para a sua infância?
 Tinha a ideia de que em criança era bastante extrovertida. Anos mais tarde, amigas dessa altura disseram-me: “Ah, continuas tímida”. Não tinha essa ideia de mim. As pessoas divertiam-se comigo. Eu cantava. Dançava. Era a menina que animava toda a gente.

 Essa extroversão não lhe foi imposta pelo facto de os seus pais serem pessoas que gostavam de cantar?
 Não sei. Os meus fins de semana eram passados com os meus pais e amigos deles, num pub em Coruche, onde cresci. O meu pai tocava guitarra e os amigos cantavam. Tenho um irmão mais velho dois anos que pedia para ir para casa, enquanto o que eu queria era ficar até às cinco da manhã. Era daí que vinha a ideia de que era uma criança extrovertida, mas pelos vistos não me viam assim. No outro dia, estava com o José Mário Branco e ele dizia que o Fausto não é uma pessoa social, mas sociável, que adora estar com os amigos. Identifiquei-me muito com essa ideia. É isso que eu sou.

 Às sete e meia da tarde pediram-lhe o impossível, o que ninguém consegue fazer. Que ficasse quieta, com as mãos nos bolsos, que olhasse em frente e não pensasse em nada. Ana Moura esteve perto de conseguir, soltando um sorriso tímido quase sem se mexer. Mais difícil foi o resto, não fosse este um dia de fim e de recomeço, de disco velho e de disco novo, de memórias e de alma renovada. Fez-se o retrato, a preto e branco, em filme e à antiga, na cave do Museu do Fado. A noite tinha caído lá fora, um polícia vigiava os carros parados onde é proibido parar. Três horas depois, Ana estará em palco, “cabelo negro comprido, vestido negro cingido e negro xaile traçado”.

 Onde algo chega ao fim há sempre outra coisa a começar. Seja uma estrada, um disco ou um Governo. Na segunda-feira, 9 de novembro, a Assembleia da República cumpriu o primeiro dos dois dias do ritual que levou ao chumbo do programa governamental de Pedro Passos Coelho. Nessa noite, no Casino Lisboa, Ana Moura interpretou ao vivo pela última vez o álbum “Desfado” — que em três anos ganhou cinco platinas e entrou para história com um dos discos nacionais mais vendidos de sempre. Nessa segunda-feira, no Parlamento, António Costa [desde há uma semana primeiro-ministro de Portugal] nada disse sobre o futuro — ficou tudo para o dia seguinte. Mas nessa noite, num palco elevado, a fadista cantou o primeiro tema de “Moura”, o novo disco. Foi ao segundo encore, já perto da meia-noite, que se ouviu ‘Dia de Folga’. Depois vieram os aplausos de uma sala cheia de gente que ia trabalhar no dia seguinte.

 O caminho até à última canção do último concerto de “Desfado” começou dez horas antes com Ana a olhar para si própria, sentada a uma mesa a assinar litografias com a capa de “Moura”, um retrato pintado pelo espanhol Ignazi. Fast forward e Ana está no carro a caminho do casino, entretida com o telemóvel e o mundo que passa lá fora, cada vez mais depressa. Os músicos já a esperam no palco, uma enorme estrutura circular elevada onde se chega através de uma ponte estreita. É nesse caminho que se dá a transformação. A mulher frágil que parece esconder-se atrás dos óculos escuros, que caminha discreta e devagar, desaparece aos primeiros acordes do ensaio.

 A voz sai poderosa, o corpo vai atrás da música. Ana canta com o corpo, com o pé que vai marcando o ritmo, com as ancas que o pé embala, com os braços, com as mãos, com os dedos que dobra. Como se a cada instante fosse preparando o instante seguinte, como se a cada pausa o peito enchesse para a explosão que se segue, anunciando o caminho que todos farão com ela.

 É curioso começar este disco com este tema da Manuela de Freitas. Foi escrito para si?
 Sem dúvida. A Manuela de Freitas e o José Mário são pessoas que me estão próximas e que me dizem para acalmar um bocadinho.

 Deixar as digressões?
 Não cantar tanto. Encontrar um equilíbrio e isso é possível. Só tenho de querer fazê-lo. Tomar a decisão.


 Ainda não quer dizer não?
 Ainda não. Este caminho tem-me trazido tanta coisa boa. As pessoas deste meio e que me rodeavam nem sempre estiveram de acordo com as minhas opções. Neste momento consigo sentir-me segura, e pensar que os meus ideais estavam certos e que são realizáveis.

 Pode ser mais específica?
 Há uns anos diziam-me que não podia ser tímida. Que tinha de dizer coisas nos concertos, falar com as pessoas, que tinha de ser um animal de palco... E eu perguntava: “O que é isso de um animal de palco?” Não percebia. Depois olhava para a Nina Simone e via uma mulher tímida, uma cantora contida. A minha timidez faz parte da minha personalidade e da minha música. Chegaram a dizer-me antes das entrevistas: “Tens de saber defender o teu produto”. Produto? A música para mim é tudo menos cerebral. Sou uma pessoa muito mais emotiva. Tenho pouco de cerebral. Estou na música dessa forma. Tive de me aceitar. Durante anos disseram-me que tinha a voz, condições, mas tinha de mudar algumas características.

 Acha que tentaram fazer de si uma espécie de “Barbie fado”?
 Não quero ser tão dura. Mas era a ideia que as pessoas tinham, e eu era tudo menos isso. Nunca correspondi às expectativas, mas todo esse discurso pesava. No segundo disco, por exemplo, saiu uma capa horrorosa. Odiei ver-me no chão com um vestido vermelho... Hoje, já não sai nada de que eu não goste. Nesta capa não queria ser uma rapariga a fazer um anúncio para a L’Oréal. Descobri um ilustrador fantástico que é o Ignazi, a quem pedi para fazer a capa. Quando a mostrei disseram-me que parecia mais velha. E eu respondi: “A ideia é essa. É eu mostrar a minha maturidade.” A partir do “Desfado” conquistei essa liberdade. 

“Desfado” é a confirmação da consagração?
 Consegui libertar-me de muitas amarras, sentir-me livre para fazer algo completamente diferente. Até então tinha gravado sempre com o mesmo produtor, tinha gravado com músicos mais velhos, que eu adoro, mas precisava de me desligar deles...

 Como também tinha precisado de se desligar antes das casas de fado?
 Exatamente. São passos que uma pessoa tem de dar, e as pessoas que nos rodeiam, e gostam verdadeiramente de nós, também têm de perceber e aceitar essa abertura. Foi no “Desfado” que consegui porque fui radical. Quis ir gravar para outro lado do mundo, para Los Angeles, com um produtor que não era português, com músicos novos, mesmo os dois portugueses que levei. Foi uma mudança radical. Estive sempre acompanhada pelo meu manager e pelo meu road manager, que é mais recente e que está mais de acordo com aquilo que eu sou. Ele dizia: “Ana, estás tão feliz!”. E o disco é tão arriscado. Estava felicíssima. Não tinha medo nenhum. Aquilo era tão libertador que eu só pensava esta felicidade já ninguém ma tira.

 Paulo Marques, o road manager, peça fundamental na vida de Ana Moura, não perde pitada. A nova canção, como todo o álbum, traz desafios novos na interpretação — pormenores como os tempos certos para respirar. ‘Dia de folga’ já passa na rádio há uns dias, e até foi mais ou menos ensaiada na edição deste ano do Caixa Alfama, com Ana Moura a ‘ensinar’ o refrão ao público. Mas hoje, dia de despedida de “Desfado”, será a estreia oficial de ‘Dia de folga’. O fim e o recomeço. No fundo, parece mais uma etapa na viagem do fado, cada vez mais longe daquilo que foi um dia e cada vez mais perto do que poderá vir a ser. A guitarra portuguesa está lá, sempre, mas há muito mais, novos instrumentos, novas abordagens, uma espécie de voo sem tirar os pés do chão. Soam os acordes do passado. “Vestido negro cingido/ Cabelo negro comprido/ E negro xaile bordado”. A fadista canta ‘A Fadista’, uma letra de Manuela de Freitas.

 A felicidade é uma coisa fácil de entender no meio do fado?
 É uma pergunta interessante. Há muita gente que diz que para se ser um bom fadista tem de se sofrer, tem de se ter uma história dura. Eu não concordo a cem por cento com isso. O fadista tem determinadas características como a emotividade, a hipersensibilidade.


 Pode estar só, mas quase nunca está sozinha Pode estar só, mas quase nunca está sozinha

 Ou não ser cerebral...
 Sim. Para mim um fadista é isso, e por isso canta uma canção com uma letra com uma profundidade incrível. Num momento, está a cantar o ‘Mouraria’ estilizado, e de repente, o corpo até se move para dançar.

 Para si o fado dança, não é?
 Sim, as pessoas cada vez que me querem imitar fazem assim (levanta o ombro esquerdo), dão à anca. De facto, parece a anca, mas não é. Eu levanto o pé e a anca move-se. Foi muito engraçado, porque as pessoas achavam que era até um modo de eu ser sensual, mas aquilo era tão natural, e o meu pai numa determinada altura foi a uma casa de fados onde eu cantava e então os fadistas e músicos reuniram-se para ouvir o meu pai, e não é que ele faz a mesma coisa?

 Essa felicidade que traz ao fado, embora neste esteja mais presente...
Sim, neste está mais. É do empurrão que eu trouxe do “Desfado”, e o facto de não ter sequer parado antes de gravar o disco. Não tive férias. Fui das digressões para o estúdio. Levava a alegria das digressões.

 Dão sempre alegria?
 Sim, dão. Às vezes cansam. O corpo pede para parar. Mas dão muita alegria.

 Às duas e meia da tarde já não há restaurantes com a cozinha aberta no Parque das Nações e a alternativa é comer sushi. Duas miúdas arregalam os olhos quando ela atravessa a porta e se senta a uma das mesas vazias — na verdade estão todas vazias. Durante o almoço parece surpreendida com uma pergunta sobre cantar fado com as mãos nos bolsos. Ainda ensaia o movimento, mas não. Garante que não conseguiria, no fado dela a voz não chega, o corpo também canta. Fala dos concertos de António Zambujo e de Miguel Araújo, que batem recordes nos Coliseus, fala de animais, dos dois gatos que tem em casa (o Twiggy e o Fellini) que foram salvos e de animais que ficaram por salvar um pouco por todo o mundo. [Poucos sabem, mas há uns meses, depois de um concerto no Barreiro, Ana voltou para casa e andou a espreitar debaixo dos carros e atrás dos caixotes à procura de um pequeno gato preto que vira nessa manhã. Não conseguiu salvá-lo. Nem esquecê-lo.

] Chega o sushi e é óbvio que alguém pediu comida a mais. É hora de balanço. Ana fala do fim de “Desfado” e do entusiasmo à volta do novo disco, da vida em viagem e das viagens que a vida ainda reserva. “Estou morta por que comece o novo disco”, diz. “Podia ter feito outro ‘Desfado’, era fácil. Até havia espaço para isso. Mas este disco é diferente, experimentámos coisas novas. Tem guitarra elétrica, usámos um antigo gravador de bobinas... É como se algo crescesse em cima do fado e o fado torna-se uma coisa diferente e deixa de ser o que sempre foi. Um disco de cada vez. Mas, sim, claro que era arriscado depois de um álbum tão platinado”.

 Não se cansa antes de entrar em palco. Não pensa: “ai, mais uma vez...”
 Não.


 Em casa, trata 
os gatos como filhos Em casa, trata 
os gatos como filhos

 O que pensa?
Gosto de saber como está a sala, ou como estão os meus músicos para saber como está o ambiente. Eles entram primeiro do que eu, ficam à boca da cena, e eu depois apareço. Já aconteceu eles terem de entrar antes de eu chegar e eu não gosto nada. É uma sensação esquisita.

 Já não se enerva?
 Se calhar enervo-me mais se for a uma casa de fados do que num concerto.

 Às quatro e meia da tarde já a sombra ganha terreno ao sol na fachada dos prédios da Calçada do Combro, no centro de Lisboa. Ana Moura tem dois vestidos para experimentar no ateliê de Filipe Faísca. Quem passa e olha para a montra vê uma fadista diante de um espelho, com as mãos na cintura. Um dos vestidos está curto, demasiado curto, o outro parece largo. No concerto desta noite a roupa que levará para o palco é um retrato dos últimos anos, passados a viajar pelo mundo inteiro. O casaco veio de Paris, a saia de Los Angeles. O relógio comprou-o na Bulgária, numa feira de rua, estava lado a lado com peças do período soviético. “Adoro este relógio”, confessa. Mas o tempo é implacável e a estrada está sempre lá.

 A casa de fados tem muitas regras. Não é um sítio de criatividade?
 Nunca programo o que vou cantar numa casa de fados. É uma coisa do momento. Vou buscar fados antigos, até porque muitos dos músicos que cantam em casas de fados têm essa capacidade de tocar todos os fados em todos os tons. Essa é a parte mais bonita das casas de fado, os músicos são extraordinários.


 Os responsáveis da editora estão sempre por perto, bem com os músicos e o road manager, Paulo Marques

 Há 14 degraus a descer à sua espera no Museu do Fado. É o caminho para a sala onde está a ser escrita a história de uma música, uma fotografia de cada vez. O projeto, da autoria de Aurélio Vasques, chama-se “Álbum de Família” e quer mostrar todos os que fazem parte do fado — os que o cantam, os que o tocam, quem o escreve e compõe, mais os técnicos de som... Mais de uma centena de pessoas, 129, parece. E Ana é a centésima vigésima oitava a ser fotografada. Os mais velhos, conta Aurélio, “chegam com o fado em cima”, embora a todos diga que não se devem vestir de forma especial. A ideia é apanhá-los como são e as imagens que foram expostas estarão perto do tamanho real — as restantes vão para o catálogo. Ana, que canta com a voz e com o corpo, fica na fotografia com as mãos nos bolsos. “Olha para a lente e não penses em nada”, pede-lhe Aurélio. E ficam ali cinco pessoas a olhar para uma mulher que se esforça por pensar em nada. Nem no dia que já vai longo, nem na noite, nem no concerto que começa daqui a três horas, nem na viagem para a Austrália, dentro de dias, nem nas entrevistas todas que ainda vai dar antes de partir, mais as que terá no regresso, nem sequer no jantar, nem no descanso. Haverá uma imagem na parede de uma Ana Moura a pensar que não pode pensar em nada. E com as mãos nos bolsos.

 Tem rituais antes de entrar em cena?
 Não, além destes de estar com os músicos.

 E os dois copos escuros... que leva sempre consigo. Não me vai dizer o que lá vai dentro?
 Gosto que os copos sejam escuros por isso, mesmo para as pessoas não saberem o que vai lá dentro. E nem sempre é a mesma coisa. Depende do estado de espírito.

 Têm álcool?
 Sim. Um deles é sempre para me dar alguma energia, a meio do palco, porque preciso sempre de energia. Mas nem sempre um deles tem álcool. O álcool tem a particularidade, sem ser em excesso, de nos ajudar a focar. Entrar em palco é para mim entrar noutra dimensão e quando não consigo estou sempre nessa luta. Não gosto de estar consciente quando estou a cantar. É um pouco estranho dizer isto, mas o que acontece é que eu não gosto de estar consciente do que está a acontecer na sala. Daí eu não usar in-ears, eu sei que toda a gente os adora hoje em dia. Ou seja, o público tem uma aparelhagem virada para eles e nós temos a nossa própria munição. Eu não uso munição aqui à frente, porque não gosto de sentir a minha voz perto. Eu uso side fields, que são duas colunas que ficam nas extremidades do palco, mas hoje em dia quase todos os cantores usam in-ears, que são uns headphones feitos através de moldes próprios dos nossos ouvidos. Não gosto porque aquilo torna-me mecânica, cerebral, centra a música só nos ouvidos. Deixo de sentir a música no corpo. Faltam-me as frequências. Já experimentei. Tenho os moldes perfeitos.

 Sugeriram-lhe?
 Sim, porque fica tudo mais perfeito. Mas eu sei que não é essa a perfeição que eu ambiciono. Perfeição para mim é outra coisa. Eu não ambiciono um som completamente imaculado, mesmo no estúdio, e isso foi algo que eu consegui no “Desfado”, no qual gravamos todos ao mesmo tempo. Claro que fica tudo mais perfeitinho captar o som de cada músico individualmente. Eu gosto de grão.



 Trabalho A sua vida é cantar, mas há muito mais para fazer

 O Casino enche depressa. À volta do palco há mesas espalhadas em dois anéis que vão girando em sentido contrário. A maior parte das pessoas fica de pé a olhar para cima. Outros conseguem arrumar-se nos pisos superiores, junto ao corrimão. São os que ficam a olhar para baixo. Os olhares cruzam-se a meio, quando a luz se vira para o centro. Nos bastidores tudo acontece agora demasiado depressa. “Faltam três minutos”, avisa Paulo Marques, que passa a correr com dois copos na mão. Ela já avança pelo corredor quando alguém repara que falta algo. “Onde está o xaile?”, pergunta Paulo. E o xaile aparece e ela desaparece. Há um mar de gente à espera da música que virá da ilha. Ana Moura e os músicos sentem o fim de uma etapa e celebram a última vez de “Desfado”.

 Neste disco conseguiu mais ‘grão’?
 Boa pergunta. O “Desfado” tem muito mais grão, e este é muito mais elaborado. Foi gravado da mesma forma, mas como tem mais instrumento e tem um instrumento que é o Hammond, que está presente em todas as músicas e dá um ambiente espiritual, de limpeza. Usamos mantas e tudo.

 Não deixa de ser uma superprodução?
 Sim, de facto. Os músicos leem as pautas antes de entrar para o estúdio e leem à primeira. Não têm contacto com a música antes. E isso também traz um lado de surpresa, que foi importante neste disco. São músicos que leem à primeira, mas que tocam um género de música que lhes é completamente estranha.

 Gosta de cantar a cappella?
 Sim, gosto. Não sei se vem das casas de fado. Mas adoro.

 Mas ainda não gravou?
 Porque é muito mágico. É uma boa sugestão.

 Porque é que gravou o ‘Lilac Wine’?
 No “Desfado”, o Larry perguntou-me se eu queria cantar o ‘Case of You” e eu pensei logo no ‘Lilac Wine’, que conheci através da Nina Simone. Depois ouvi o Jeff Buckley e disse: Uau. Pensei que depois da Nina Simone não havia forma de me surpreender. Não consigo escolher entre uma versão e outra. Para mim o ‘Lilac Wine’, sempre foi uma versão de um fado em inglês, de um fado que foi escrito há muitos anos para o Fernando Maurício, que é um copo mais um copo.


 Três momentos de um dia: provar vestidos no ateliê de Filipe Faísca

 Dois fados tradicionais num disco quer dizer que está a tirar folga do fado?
 Não é uma vontade. Tanto que me chegaram a dizer que com tantas músicas que tenho não fazia sentido gravar fado tradicional. E eu respondia: Faz? Faz! O que eu não quero é gravar fado tradicional da forma como já foi gravado muitas vezes. Eu quero procurar o meu caminho, procurar composições sem ser do fado tradicional. Quero gravar fado tradicional mas de um modo diferente. Desta vez a ‘Moura encantada’ tem um som inicial que é o feedback de uma guitarra elétrica, com o som de uma gravadora de fita a arrancar. Ou seja, não sei como é que vai ser recebido no meio puro e duro do fado. Este fado, o ‘Fado Cravo’, já foi cantado por muitos e belíssimos fadistas. Não quero fazer como sempre foi feito. Depois quero que o fado tradicional esteja presente, porque eu sinto que sou fadista.

 Com a voz que tem de contralto, porquê insistir no fado?
 De facto, quando eu apareci eram só vozes limpinhas e agudas. Ainda me lembro no início de tentar fazê-lo.

 Se “Desfado” já era o início da felicidade, no fado ‘Moura’ é a confirmação dessa felicidade no fado?
 Sim, sem dúvida. É a confirmação da alegria.

 Lembro-me de ter lido velhas entrevistas em que mais do que a timidez o que estava presente era a tristeza... Sim, por isso é que a música foi muito importante para mim. Tenho os meus momentos, mas acho que já ultrapassei essa tristeza, aquela coisa de olhar para as minhas fotos e ver sempre aquele semblante. O olhar triste.


 Sessão fotográfica no Museu do Fado

 Em que é que estava a pensar?
 Não sei. Até me dava vontade de chorar, eu era assim... Sou extremamente emotiva. Emociono-me com as coisas mais simples da vida. Posso estar muito feliz e cinco minutos depois já estou triste porque vi qualquer coisa. Agora já tenho as minhas defesas, porque senão estou sempre triste.

 A idade livrou-a disso ou vai-lhe aprimorando a sensibilidade?
 Vai-me ajudando a lidar com ela. Os 36 anos estão a ser a melhor idade. Sinto-me feliz. A música trouxe-me felicidade, ajudou-me a lidar com as minhas emoções, assumir aquilo em que acredito. Estar mais confiante.

 Há pouco disse que quando começava a cantar entrava noutra dimensão. É capaz de me descrever o que se passa consigo?
 É como se deixasse de ter consciência de mim como corpo. Quero ir para um sítio e ficar nele. Não sei explicar.

 E o corpo depois não se queixa. Não dói?
Dói imenso. Tenho uma pessoa que me acompanha na estrada e que é massagista. É ele quem me tira as dores da coluna.

 O facto de ter fãs tão famosos, Mick Jagger, Prince, isso continua a ser uma força?
Sim. Envio-lhe o disco mal acabo de gravar e gosto de saber a opinião. Então o Prince, que é uma pessoa genial, toca todos os instrumentos, é excelente em tudo. A opinião dele para mim é importante. Também me dá alguma segurança. Mais como amizade do que como a figura.


 Um depoimento a propósito da detenção de ativistas em Angola

 Já se esqueceu de quem eles são?
 Volta e meia. As pessoas lembram-me mais do que eu. Principalmente se estiver em lugares públicos. Quando estive a gravar em Los Angeles ele foi lá ter comigo, e ir a qualquer sítio não é muito fácil. Aqui podemos ir a uma tasquinha... Sempre que fui jantar com Mick Jagger tive de escolher salas privadas. Quando os Rolling Stones cá estiveram fui mostrar a Quinta da Regaleira ao Mick Jagger, e ele estava com um boné e com um mapa à frente da cara, mas mesmo assim as pessoas reconheceram-no. Foi horrível. Nem foram os portugueses, foram os estrangeiros. Eu, ele e o segurança tivemos de correr por ali acima. Ele é superjovem. Conheço gente da minha idade que é muito mais velha do que ele. De cabeça e de tudo.

 A Ana não sente isso?
 Sinto à minha escala. Às vezes vou jantar fora, nota-se. As minhas relações  sempre se queixaram disso.

 É um peso muito grande para um homem?
 É. Dá mais insegurança do que segurança. Só tenho provas disso. Pessoas que eu julgava seguras... e depois que se demonstram extremamente inseguras.

 Se fosse um homem era mais fácil?
 Acho que sim. Eu tenho gente da minha idade a dizer-me que era incapaz de namorar com uma pessoa como eu. E até gente nova.


 Fim O dia de fim de “Desfado” é o dia do começo de “Moura”. Ana dá os últimos retoques na imagem...

Traz demasiado brilho, é isso?
 É por aí, é... Ainda tenho esperança de que exista um homem seguro de si, que esteja bem na sua pele, que não se sinta mal numa festa porque as atenções vão todas para mim.

 Com o Mick Jagger e com o Prince também fala dessa impossibilidade?
 Sim, a solidão está sempre presente. O Prince acredita que se nós negarmos essa condição para a qual formos predestinados vamos ter consequências negativas. Há um lado espiritual nele.

 E a Ana também tem esse lado espiritual?
Começo a acreditar. Eu vivia para a música, mas não lhe dava a importância que lhe dou hoje. Tenho a certeza de que tive consequências. ...


 e avança pelos bastidores ...

 Há que aceitar essa solidão com alegria?
 Sim, para já sim. Se chegar aos 45 anos sem filhos já não sei se vou olhar com a mesma alegria. Eu gostava muito de ser mãe. Tenho a minha sobrinha, e trato os meus gatos como se fossem meus filhos. É uma coisa incrível. Tenho imensas saudades deles. Adoro animais.

 Três anos depois, Ana Moura canta para todos como se falasse para cada um e abre com ‘Amor Afoito’. “Dou-te o meu amor/ se mo souberes pedir, tonto/ não me venhas com truques, para/ Já te conheço bem demais”. O contexto é diferente, todos sabem, mas em dia de queda do Governo é difícil não pensar em política quando se ouve “Pode um rebento em Belém/ ser filho mas só da mãe”. O álbum velho chega ao fim uma música após outra. A meio do concerto, Ana senta-se para ouvir os seus músicos — Mário Costa, na bateria; no baixo, André Moreira; Pedro Soares na viola; Eurico Amorim no teclado e, um dos mais aplaudidos, Ângelo Freire na guitarra portuguesa. A banda lança-se, viaja e muitos no público olham, desconfiados. Não é por isto que estão ali. Querem-na a ela. Ana Moura regressa para interpretar ‘Valentim’ (que canta com Bonga no recente álbum “Amália: As vozes do fado”), para recordar ‘Búzios’, um dos seus maiores sucessos, ‘Fado Alado’ e, por fim, ‘Desfado’.

 Ana Moura sai do palco apenas para voltar logo a seguir. O ‘Desfado’ acabou no instante em que cruzou a estreita ponte e abraçou Paulo Marques. “Moura” começou quando fez o caminho contrário, ao encontro de um Casino cheio para a ver. As mesas giram devagar e o momento é quase litúrgico. ‘Loucura’ é o fado que se segue. Soa a promessa. “Chorai, chorai/ Poetas do meu país/ Troncos da mesma raiz/ Da vida que nos juntou/ E se vocês não estivessem a meu lado/ Então não havia fado/ Nem fadistas como eu sou”. Ninguém pensa outra coisa. O Casino rendeu-se à primeira música e agora todos a olham como se pensassem em nada. Não é preciso. ‘Dia de Folga’ começa com sol na ruela dela.

 Se este disco não se chamasse “Moura”, como se chamaria?
 Os nomes são sempre um problema. Comecei por me preocupar com a capa, uma foto minha pintada pelo Ignazi com uma borboleta, que simboliza a transformação, e depois tinha duas canções com o nome Moura, ‘Moura Encantada’ e ‘Moura’, e entretanto fui pesquisar sobre o nome Moura e cheguei às letras do folclore português e descobri que elas eram seres que tomavam diferentes formas. Aí percebi que estava tudo certo. Gosto da ideia de que os nomes nos predestinam a uma determinada coisa, e eu sou uma mistura de várias coisas. A minha mãe e toda a família materna é angolana, e o significado de moura é moreno.

 Há sangue negro?
 Sim, a minha avó fala unbundo. Eu aprendi kibundo. Tanto o meu pai como a minha mãe cantam músicas do cancioneiro angolano, mas nenhuma delas nessa língua. Eu é que fui esgravatar para cantar em kibundo. Adoro cantar em línguas que me são estranha.


 Antes de entrar em palco, celebra com os músicos.

Quando é que eles vieram?
 Em 1975. A família da minha mãe era angolana e o meu pai foi para lá com 13 anos, com a família que era de Amarante. Depois viemos para Coruche porque a minha mãe era professora e ficou lá colocada. Mas ainda andámos pelo Alentejo quando a minha mãe foi lá colocada.

 Foi traumático?
 Eu ainda tomei um bocadinho as dores, através das histórias que me foram contadas. De tanto os ouvir falar a dada altura parecia que também eu tinha vivido lá... Um dia fui a Cuba, com a Katila Mingas, e ao sair do avião digo: ‘Parece Luanda!’ e eu nunca tinha estado em Luanda. Herdei tudo aquilo, e engraçado que o Agualusa já me disse que a minha voz está cada vez mais negra, e não é o único. O Prince e o Mick Jagger também acham que o meu timbre tem determinadas características por causa dessa origem negra.


 O Casino Lisboa rende-se à primeira música

 Já que nos aproximamos da quadra natalícia, como é que vai ser o seu Natal?
 O meu Natal vai ser passado com os meus pais, irmão, sobrinha que vem de férias, avó, tios e primos.

 Qual é a melhor memória desta época?
É a de começarmos a preparar as músicas de Natal nos dias que o antecediam para as cantarmos em família na noite da consoada.

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