Na pele de um leproso

DO TEXTO:









Por: Carlos Alberto Alves
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Desde há muito tempo que pretendia debruçar-me sobre este tema, impelido, para o efeito, por um livro que li sobre leprosos. Confesso que sempre me faltou coragem, mas, hoje, como sói dizer-se na gíria popular (pelo menos, na portuguesa), “atirei-me de cabeça”. Assim sendo, entro aqui “na pele do leproso”.

Sou o leproso (será que consigo ouvir Roberto Carlos?) e estou aqui. Não posso fazer muito mais coisas...

Já sabem: a carne apodrece-me e cai deixando feridas. Cheiro mal. Se pudessem ver-me, ainda tinha um resto de nariz para vos mostrar. E os olhos, no fundo de uns buracos que têm aumentado imenso.



Mas não seria agradável olharem para mim. Nem eu próprio olho para mim: deixei de usar espelho há muito tempo. Não é necessário, aliás, porque os outros leprosos quase todas as manhãs me vão contando as novidades. Acontece, normalmente depois de acordarmos. É que para nós também existem a noite e o dia, e muitas vezes conseguimos mesmo dormir no chão duro destas cavernas.

Dão-me os bons-dias e dizem qualquer coisa como: «Olha, pá, já não tens a orelha direita». E a verdade é que nessas ocasiões nos rimos muito. Acho, até, que estamos proibidos de viver nas cidades dos homens porque não querem ver-nos rir.

O único riso verdadeiramente puro é o daquele que se ri de uma orelha que caiu. Mas poucos sabem disso.
Se caminhássemos pelas avenidas haviam de lembrar-se de que todas as orelhas inevitavelmente cairão. E não é agradável que recordem constantemente a alguém a ameaça cada vez mais próxima de um problema para o qual não possui solução.
Nós também não temos solução. Rimo-nos.

A solução está em não haver solução. E esta forma divertida de aceitarmos que a vida seja como é, este modo sossegado de cooperarmos com o inevitável, significa para nós uma serenidade que é um tesouro sem preço.

Para os outros, somos somente a lembrança desagradável de que não passam, também eles, de leprosos adiados e de futuros cadáveres de que, sem dúvida, não terão neste lugar o seu paraíso, por mais que façam crescer o saldo da sua conta bancária.

Somos um grito em forma humana, um aviso irrecusável, uma censura que inevitavelmente se aloja no fundo das consciências.

E, por isso, fomos empurrados para estas cavernas. O que, de resto, não nos incomoda demasiado, pois todo o planeta é, de certo modo, uma caverna. Lembramos perfeitamente a frase da mulher santa de Ávila, quando disse que esta vida não pode ser mais do que uma má noite numa má pousada.

Não querem cruzar-se connosco. Desejam abraçar sem perturbações a voragem alucinante do seu caminho de prazer e vaidade. E viemos para estas cavernas. Os idosos foram expulsos das suas famílias e encerrados em “lares”. Planearam a eutanásia para se verem livres dos doentes. E abortaram aqueles que poderiam vir a nascer com deficiências. E muitos foram abandonados às suas dores na solidão de negros hospitais. E fizeram muitas outras coisas.

Mas, do fundo destes buracos, temos um segredo para lhes dizer. Quando, num momento de lucidez, descobrirem que tudo é vazio, venham ter connosco. Quando não souberem como fazer dos filhos homens direitos, passeiem com eles por um cemitério, sentem-se com eles à beira de um doente que sorri no leito onde vai morrer, levem-nos aos lugares onde há crianças esfomeadas a brincar, descalças e alegres.

Sim, podemos contar-lhes o segredo da alegria, o segredo da bondade das coisas más, o segredo da plenitude que habita as coisas simples.

NOTA FINAL – Se eu hoje fosse na realidade um leproso (apenas vesti a pele para escrever esta matéria), certamente que, metido num “hospital-caverna ou  numa caverna hospital”, gostaria de ter a meu lado um aparelho de rádio (não muito sofisticado. O mais simples possível...) para sintonizar rádios que passassem as canções do King Roberto Carlos. Sei que, preferencialmente, das muitas que o fazem, ficaria sintonizado na GLOBO, que considero a “voz oficial” de Roberto Carlos.

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1 Comentários

Comentários

  1. Olá Carlos Alberto!

    Na minha mocidade conheci um leproso.Pertencia a uma família amiga e moravam perto de casa, lá em Franca.Ele estava num hospital só para leprosos e não me lembro a cidade onde era localizado.
    De vez enquando ele ia visitar a família e eu nunca notei nele algo que não fosse umas manchas na pele.
    Casou-se depois, com uma moça de lá do hospital também.Cheguei a vê-la e sem notar nada.
    Se não me engano depois de certo tempo, foram dados como curados e passaram a viver na cidade.

    Mas a vida da gente muda tanto,tanta coisa aconteceu, tantos anos se passaram que eu havia esquecido deles. Lembrei tudo ao ler seu artigo.

    Lembrei também de um filme visto há muito tempo, com Charton Heston, lá os leprosos eram como você cita.
    Imagino como deve ter sido difícil você se colocar na pele de um leproso.

    Um abraço,
    Carmen Augusta

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