Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Tal desvio!

Lugar dos Dois Caminhos, 17 de Abril

Às vezes penso no trabalho dos geógrafos e na inevitabilidade da sua conclusão: as fronteiras entre a cidade e o campo são cada vez mais imprecisas. Ainda há dias esteve cá o Arlindo e vinha com um livro fundamental de Álvaro Domingues, que aliás quase partilha o nome com este espaço – Vida no Campo – mas com uma ironia que, aqui, nunca foi desiderato principal.
A verdade é que a cidade está em todo o lado, hoje. Grande parte da paisagem do campo foi contaminada pela paisagem da cidade. Mesmo quando falamos de turismo rural, por exemplo, falamos do quê senão, na maior parte das vezes, de um olhar da cidade – até condescendente – sobre o campo? “Em suma”, verbalizou algum de nós, fazendo pingar as derradeiras gotas da última garrafa, “será que ainda se pode dizer sequer que existe campo?”
Não por acaso, vim a dar uma atenção completamente distinta à conversa que tive no dia seguinte com o Carlos. Fomos ao Alto Sé, onde eu resisti às arrufadas e ele resistiu mesmo ao café, como qualquer homem de cinquenta e muitos com o aspecto de um homem de quarenta e poucos. “Agora a questão já nem é a que horas chegam os jornais”, suspirou. “É se os jornais ainda chegam hoje ou só chegam amanhã. E muitas vezes só chegam amanhã.”
Sempre falámos muito de jornais. Quando eu era adolescente, passava os Verões a vender jornais nas tabacarias dele. Depois de me tornar jornalista, ele contava aos novos clientes que o tipo que tinha escrito esta ou aquela crónica era amigo da casa e até havia trabalhado ali na adolescência. Fomo-nos fundando nisso, e, quando comecei a publicar livros, quase nem me lembrei de avisar as livrarias: avisei o Carlos.
É sempre ele quem se ocupa dos meus lançamentos. É nas suas lojas que há sempre stock. É ele quem vai a todo o lado onde sou convidado a ir – sempre com uma caixinha de exemplares no porta-bagagens. É ele quem faz montras e cartazes, quem faz envios pelo correio e até para tabacarias de outras ilhas. Só de um dos últimos livros, vendeu mais aqui na Terceira do que alguns dos meus primeiros títulos venderam a nível nacional. Mas, mesmo assim, eu teria sempre de admirá-lo em primeiro lugar pelo que faz com os jornais.
Lembro-me de como era no início dos anos 90, quando trabalhava para ele. Ele, o Armando e o Álvaro: sabiam de cor os horários de aviões, sabiam de cabeça os nomes dos funcionários do aeroporto e sabiam sem precisar de conferir a que horas viria cada cliente comprar que jornal. Eram uns mouros de trabalho, os três. Nesses anos gloriosos, e apesar de operarem numa pequena cidade de vinte mil habitantes, chegavam a vender mais de mil jornais por dia – fora revistas e fascículos.
Nos últimos anos, claro, já não era nada disso. Veio a Internet, veio a televisão a rodos, vieram os índices de leitura deploráveis. Os jornais perderam massa crítica, os leitores de jornais também e, no geral, a indústria contraiu-se. Mesmo assim, as lojas do Carlos e dos colegas vendiam bastantes jornais – quase todos os que se vendiam nesta ilha. E agora, de repente, já não vendem quase nenhum.
Não porque não reste ninguém para os ler: ainda há quem  os queira, mesmo se não tanta gente como no passado. Não porque não sobre às lojas força para os vender: ainda é nos jornais que sentem mais em jogo todo o seu sentido de missão. Simplesmente porque os aviões da SATA e da TAP já não os trazem. Ou porque os trazem apenas no voo da madrugada seguinte, quando já ninguém os lerá.
Portanto, se ainda há campo e cidade, não me cabe a mim proclamá-lo. Mas talvez não devamos agora situar essa fronteira nos domínios da geografia. Talvez a diferença entre o campo e o cidade esteja hoje numa coisa tão simples ou complexa como essa: já não haver jornais num deles – não pelo excesso de comunicação que vinha dando cabo da indústria (e do mundo), mas, surpreendentemente, por escassez dela.
Aqui na Terceira temos, felizmente, o Diário Insular, que é bem feito, nunca perdeu de vista o seu leitor e soube sempre reinventar-se. Mas agora penso nas ilhas que não têm um jornal local em condições. E penso em todas as cidades e vilas de Portugal aonde as carrinhas, os comboios e os próprios carteiros já não têm paciência, ou já não vêem vantagens, ou já não encontram lucro em levar os jornais nacionais, com a sua visão do mundo e a sua letra impressa.
Fica tudo nas mãos da pirotecnia da televisão. Fica tudo a cargo do berreiro da Internet. Não só deixa de haver termo de comparação, mas até filtro deixa de haver. O juízo estético dilui-se, a noção de medida certa esboroa-se. É tudo de toda a gente em todo o lado – a ênfase e a razão confundem-se, o mérito e o ruído também, e agora não resta a um rapaz que podia fazer-se um homem, como a uma rapariga que podia fazer-se uma mulher, senão enfiar-se em casa, rindo com uma certa amargura da ignorância do mundo ou (pior) atirando tudo isso para trás das costas.
Sim, há campo e há cidade, creio. A cidade é triste e desesperançada e o campo faz um esforço para sê-lo também. E, quando pensamos nisso, o que descobrimos, como no início, é que os geógrafos, afinal, têm mesmo razão.



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